quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Adeus, 2015. Obrigada.

O final de cada ano leva-nos, invariavelmente, a um balanço dos 365 dias que passaram, de tudo o que foi vivido, dito e sentido ao longo dos últimos doze meses. É um exercício interessante contrapor a pessoa que éramos no dia 1 de janeiro com a que somos no dia 31 de dezembro do mesmo ano. Em princípio crescemos, sabemos um pouco mais sobre alguma coisa porque ganhámos ou perdemos pessoas, acumulámos mais experiências e, em princípio, mais conhecimento. Se tudo tiver corrido como é suposto, deixámos a nossa marca em alguém e alguém (ou vários alguéns) deixou a sua marca em nós, pelo que estamos em constante mudança e somos pessoas novas todos os anos, ainda que a nossa essência não mude.
2015 foi, para mim, um ano de autoconhecimento e de recuperação. Lenta, sim, até porque me trouxe logo três mudanças significativas que alteraram a minha forma de ser. Comecei, felizmente, o ano com uma mudança de trabalho que hoje me permite dizer que acordo com um propósito e que sou feliz naquilo que faço; mudei de casa para ir viver com uma amiga recuperada no ano passado; e, pouco depois, alterei o meu estado civil, marcando assim uma nova etapa na minha vida adulta.
Ainda assim, a primeira parte do ano não foi brilhante e penso nela sempre como uma fase escura, ausente de luminosidade, pautada por alguma insegurança, instabilidade e mal-estar que fui tentando contrapor com uma inscrição no ginásio, a recuperação de uma amizade de adolescência, a aquisição de uma nova amizade e a criação de um grupo de escrita.
O ponto de viragem foi a semana incrível que passei em Abrantes. É impressionante quão bem aquela terrinha algures em Portugal me fez sentir. Regressei recuperada, com um novo ânimo, feliz e tranquila, entrando, então, na segunda parte do ano, esta sim mais colorida, cheia de luz e de fé no amanhã, com almoços e fins de tarde passados na praia, debaixo de um sol quente que se fez sentir até bastante tarde. Recuperei mais uma amizade há muito perdida e, graças a ela, senti-me um pouquinho mais em casa. Paralelamente, alimentei as que já tinha. Fui entrevistada no Porto Canal, lancei um livro e fui apresenta-lo a Lisboa, onde reencontrei parte da minha família e onde celebrei com os meus amigos mais próximos. Comecei a correr por pressão, mas acabei por cortar a meta da S. Silvestre do Porto, com vontade de atingir outros objetivos nesta área. Escrevi seis crónicas para uma plataforma pública e dois contos para uma outra. Assisti a praticamente todos os concertos que queria e fui duas vezes a Lisboa, onde passeei quer de dia quer de noite, relembrando-me, assim, do quão especial aquela cidade é.
Foi o primeiro ano em muitos em que não saí de Portugal, mas talvez isso tenha contribuído para me convencer um pouco mais de que é de facto aqui a minha casa, rodeada das minhas pessoas, dos sítios que me são conhecidos e a seguir as minhas rotinas habituais.
Senti-me muito feliz e amei muito, por vezes iludida por uma errada sensação de pertença. Vivi, também, momentos de tristeza intensa, de descrença e de ausência de esperança.
Não tendo sido um ano espetacular, 2015 foi um bom sucessor de 2014, uma evolução muito positiva.
A lição que me trouxe foi que, dê a vida as voltas que der, demos nós as cabeçadas que dermos, a base de tudo é a família: os pais/filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, tios e primos são quem realmente importa.
A 2016, se me for possível, peço menos das partes más e mais das partes boas, sem grandes oscilações.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

São Silvestre - Porto 2015

Não somos atletas, embora, em maior ou em menor grau, sejamos todos desportistas. Traçámos o objetivo familiar da S. Silvestre do Porto de 2015 e fomos treinando (uns mais do que outros) os 10km, sempre motivados para conseguir fazê-los no mínimo de tempo possível.
O nosso intuito não era o de competir com ninguém, mas o de começar e acabar em equipa, e foi isso mesmo que fizemos, com uns a puxar pelos outros.
Falando por mim, as subidas dão-me cabo do corpo, da respiração e da resistência. Ainda assim, o espírito de equipa revelou-se algo incrível, talvez mesmo indescritível: a força do incentivo dos outros elementos, olhar para o lado ou para a frente e ver que estávamos sempre todos juntos, não ficar nunca ninguém para trás e as frases entusiasmadas que íamos ouvindo foram, no meu caso, suficientes para não me fazer abrandar nalguns dos troços mais complicados (como foi o caso da subida final do Túnel de Ceuta).
Ao longo de todo o percurso havia gente pendurada nas varanda ou nos passeios a apoiar (achei sempre que não era incentivo nenhum, mas percebi que estava redondamente enganada!) e adorei o desportivismo e companheirismo de todos os corredores – com gritos, cantorias, piadolas (é verdade, os portuenses têm uma capacidade fantástica de encontrar sempre uma piada para dizer em qualquer situação) –, que estavam em competição, é certo, mas no melhor dos espíritos de diversão e de convívio.
Infelizmente, partimos com um elemento a menos e cheguei ao final mais cansada do que alguma vez me lembro de ficar (tive ali uns momentos de desespero em que maldisse o momento em que decidi juntar-me àquela ideia louca), mas parece-me que para o ano a dose se repete, sempre a juntar membros da família, sem lesões, de preferência.

Se os tempos melhorarem, excelente!



♥ segunda feira



You can tell by the way
She walks that she's my girl
You can tell by the way
She talks, she rules the world

And then she'd say, "It's okay
I got lost on the way
But I'm a supergirl
And supergirls don't cry"

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Vícios adolescentes

No último concerto a que fui, tal como o previra, a maioria do público eram adolescentes. Na minha inocência, fiquei antecipadamente descansada com a ideia de sair de lá com as roupas e o cabelo a cheirar a fumo porque não só não se fuma em sítios fechados, como o espectro de idades não incluiria fumadores.
Obviamente, dois erros crassos de julgamento embora, na verdade, a sala fosse devidamente ventilada, o que me evitou um novo perfume desagradável. Ainda assim, o que me impressionou foi que, tal como tinha previsto, a plateia era, maioritariamente, composta por menores de vinte anos, sendo que havia por lá muitos miúdos com os seus 13/14 anos. Até aqui tudo bem, claro, só lhes faz bem. No entanto, o cheiro a ganza era intenso e quase todos eles tinham um copo com conteúdo alcoólico nas mãos.
À primeira vista, é fácil ignorar, até porque os miúdos hoje em dia têm aspeto de serem bastante mais velhos do que aquilo que são, mas analisando melhor, era mesmo possível ouvir-lhes ainda as vozes que não tinham passado pela transformação para a voz adulta e os comportamentos imaturos de meninos, ainda quase crianças, cujo organismo é, obviamente, incapaz de lidar com o álcool (ignoremos, para este efeito, as drogas).
De certa forma, consigo compreender a pressão dos pares, o desejo de pertencer, de sentir aquela euforia que os outros dizem experimentar, embora a mim, no baixo alto dos meus 28 anos, essa atitude de ceder à corrente me pareça apenas absurda. Mas é para isso mesmo que se passa por uma adolescência, certo? Para experimentar, fazer asneiras, cometer erros e, no final do túnel, saber distinguir o certo do errado.
Há, todavia, outra questão que me faz confusão e que é transversal a qualquer idade: o que é que leva pessoas a embebedarem-se intensamente num concerto? Pagaram um bilhete, neste caso para ver ao vivo um grupo a que não têm acesso sempre que lhes apetecer, e exageram no álcool possivelmente ao ponto de ficarem com a mente tão turva que não só não conseguem assistir devidamente ao concerto como, talvez, não conseguirão recordar-se de nada no dia seguinte.

Nenhum vício é bom, nem mesmo os hábitos saudáveis levados ao extremo, mas fico com pena – e algum receio, confesso – quando vejo aqueles que há não muito tempo eram apenas crianças inofensivas optarem por comportamentos desviantes que, em muitos casos, não têm retorno.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Sem-abrigo

A porta aberta chamava o ar frio da manhã a entrar, sem barreiras nem controlo, apenas uma passagem direta para o calor esforçado do interior.
Lá fora, a rua sinistra, tantas vezes percorrida e pisada com todos os pares de sapatos que possuía, apresentava-se como um elemento estranho, desconhecido. Hostil, até, repleto de caras anónimas num mar de medos, de sustos e de repreensões alheias.
Gelava, fixando as pessoas que desfilavam à sua frente, apressadas para continuar as suas vidas tão cheias e completas que se desinteressavam do que as rodeava e daquele par de olhos que as perscrutava, querendo saber mais do seu caminho e, ao mesmo tempo, temendo descobrir a complexidade daqueles seres, de certa forma superiores.
Lá dentro, no quente conforto de uma casa habitada, os rostos familiares com que não se identificava escarneciam, evidenciando-lhe o seu desencaixe, a sua ausência de pertença. Não estava lá e não estava cá, era parte deles, mas não tinha lugar ao seu lado, naqueles sofás de couro bem cuidado, naquelas canecas de chá fumegante, naquelas mantas polares, naquelas conversas fluidas de quem se conhece bem e partilha momentos quase sem ter de, para isso, falar.
No vidro da porta descobriu o seu reflexo. Os olhos quase fechados, o nariz fino, a ausência de sorriso nos lábios, o queixo arredondado e os traços distintivos eram seus, sem dúvida, mas não se reconhecia neles. Era a sua cara, mas não era a sua pessoa, porque não se revia naquele ser apagado, despojado de qualquer brilho.
Olhando um pouco mais fundo, encontrou uma escuridão que sabia existir, que sentia, mas cuja intensidade da negritude assustava, porque aparentava ser um ponto sem retorno, do fundo do qual era impossível recuperar.
Punha um pé de fora e uma onda de arrepios enregelados sacudiam-lhe o corpo confuso. Refugiava-se lá dentro até o calor excessivo lhe colar as roupas à pele, num incomparável desconforto.
A dança sucedia-se, sempre refletida naquela porta de vidro que lhe seguia cada movimento, rangendo de vez em quando, espicaçada pelo vento provocado por aquela pessoa fora de si e do mundo, querendo descobrir qual o lugar a que pertencia. Lá dentro, lá fora ou no intermédio, com um pouco dos dois, com nada de ambos?
Naquele limbo estonteante, a porta de vidro sugava-lhe um pouco mais da sua alma a cada passo em frente e a cada passo atrás, perdendo-se na indecisão e na indefinição de não se sentir bem em lado nenhum, nem na sua própria pessoa.
Não dormia na rua, mas era um sem-abrigo.

♥ segunda feira



I was born in a thunderstorm
I grew up overnight
I played alone
I'm playing on my own
I survived

You took it out, but I'm still breathing

I had made every single mistake
That you could ever possibly make
I took and I took and I took what you gave
But you never noticed that I was in pain
I knew what I wanted; I went in and got it
Did all the things that you said that I wouldn't
I told you that I would never be forgotten
And all in spite of you

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Recomeçar

Os novos inícios têm tanto de entusiasmante como de assustador, sobretudo se nos forem impostos por força de algumas circunstâncias que não podemos controlar.
A princípio surge a confusão, que conduz à tomada de decisão desse mesmo novo começo do qual desconhecemos tudo, obviamente. Não sabemos o que nos espera, como vamos lidar com um novo dia-a-dia sem os hábitos a que estávamos já intimamente ligados. Vem, então, o medo de que esta nova fase não traga nada de bom em relação àquela que se deixou para trás. Para quê mexer no que está quieto? Talvez não fosse bom, muito menos ótimo, mas era estável e, mais importante, era aquilo que conhecíamos, o que tínhamos como garantido sempre que acordávamos.
Contudo, há uma parte de nós, mesmo que seja a mais silenciosa, que ambiciona esse futuro planeado, essa ideia de mudança que projetámos, em contraste com aquilo que tivemos de deixar para trás.
Mantermo-nos fiéis à decisão não é simples: exige força de vontade e capacidade de abstrair o pensamento que teima em fugir para aquele único assunto, de tantos que podia escolher. É para isso que existem os amigos, os ginásios, variadíssimos desportos, cursos, leituras, filmes, séries e demais distrações que passamos a usar como escape daquilo que nos perturba e consome hora após hora, mesmo no tempo em que fechamos os olhos à espera, em vão, de que o cérebro desligue.
Algures por aí temos de conseguir aceitar, de forma a mantermos a nossa palavra porque, no fundo, sabemos que o novo estado de coisas, ainda que instável e turbulento, tem potencial para trazer algo de muito melhor do que aquele ao qual fechámos a porta.
É então que, quase sem dar por isso, já sem pensar tanto no assunto, os grumos da farinha nos ovos desaparecem, dando origem a uma massa consistente, amarela e aveludada, pronta a cozinhar. As angústias, pois, atenuam, dão lugar à tranquilidade por que fomos lutando e o entusiasmo cresce, porque percebemos que, de facto, aquilo que conhecíamos não era, forçosamente, o melhor para nós. Talvez agora a vida não esteja a emoção que imaginávamos nos momentos iniciais de picos de positivismo, mas está, na verdade, mais serena. Pronta a receber tudo de bom que estiver à nossa espera e que não estávamos capazes de apreciar devidamente.

Tudo vem no tempo certo para cada pessoa, desde que nos preparemos interiormente para isso.

domingo, 13 de dezembro de 2015

A dor de saber

Olhei para ti, sabendo que as nossas horas estavam contadas. Quis pedir-te mais um beijo, mais um abraço, mas a minha voz estrangulou-se: se não davas era porque não querias.
Apertei-te um pouco, indiciando-te a minha necessidade de ti, do teu carinho, do teu tempo e do teu amor. Quis mais, só mais um pouquinho. Aquele pouquinho que me falta... que nos falta para não sermos eu e tu, mas para sermos nós. O nós que nunca quiseste que fôssemos, porque a ideia é mais aliciante do que a realidade de um nós que obriga a que abdiques de algumas coisas para a concretizarmos.
Não te cheguei. Nunca fui suficiente para ti, para os teus abraços, para o teu tempo, para as tuas cedências nem para o teu amor.
Fui sendo parte de algo, um bocadinho de qualquer coisa. Nunca fui a coisa. Por muito que te mostrasse a melhor versão de mim mesma, nunca fui suficiente.
Tentei olhar-te nos olhos, mas os meus estavam turvos da despedida interior que nos vou fazendo. Decidi em mim, tenho o mundo como minha testemunha.
Pousei as minhas mãos nos teus braços, fechando-as com a força de que era capaz. Seria uma das últimas vezes em que te tocaria, em que estaríamos só nós os dois ali, naquela sala lúgubre. A minha respiração pesada e acelerada contrastava com a tua tranquila e serena, tão alheio ao que se passava dentro de mim, diante de ti. Não querias saber. E eu queria não querer saber.
Despedi-me de ti com um até amanhã mentido. Foi o primeiro dos meus adeus. Teria alguns até ao adeus final, para me permitir ir habituando à ideia de que a minha vida não entra na tua, não se encontra com ela.
Não sou eu a desistir, a baixar os braços ou a ser fraca, mas não tenho forças para aguentar a dor que me paralisa de cada vez que aquela imagem se instala no meu cérebro, piscando furiosamente, sem parar, até me conduzir a uma loucura ciumenta de uma partilha indesejada.
Queria-te para mim, para seres meu e eu ser tua e, juntos, dominarmos um mundo incrível que seria aquele que construiríamos em par.
Tu querias-me numa outra medida, que eu nunca seria capaz de cumprir. O meu amor por ti é demasiado forte para me aguentar ao teu lado.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Terrores noturnos

Tinham-se passado cerca de quatro meses desde a tarde que tudo mudara. Não no sentido convencional nem com um marco de mudança definido, mas fora como se os ventos tivessem começado, apenas porque sim, a soprar a seu favor.
Sentada no sofá, coberta por duas mantas quentes, via esses últimos meses passarem-lhe diante dos olhos em forma de fotografias e de pequenos vídeos relativamente acelerados, ao som de uma música romântica e bem-disposta, até que a sucessão de imagens travou a fundo e estacou naquela noite gelada que nem as iluminações natalícias atenuavam.
O coração esmurrava-lhe o peito com violência e o nó da angústia estrangulava-lhe a garganta. Queria falar, desabafar, gritar, mas perdera a voz. Nem chorar conseguia, ainda que sentisse que era essa a única forma de aliviar aquele aperto.
Tinha sido culpa sua: permitira-se acreditar e relaxara na certeza de que era para ser. Achara que daquela vez tinham tudo para resultar, para serem mais fortes do que os medos, mas dera-se conta de que os fantasmas não eram espectros do passado que surgiam de vez em quando para os atormentar. Tratavam-se, afinal, de monstros que partilhavam, no momento presente, a vida com ele, rasgando, por consequência, a dela em incontáveis fiapos sangrentos.
Não sabia dele. Procurava-o por todo o lado não chegando a contactá-lo para não o empurrar para mais longe ainda. Mentia. Não lhe falava para não ter de ouvir a verdade dolorosa de que não lhe era suficiente.
As duas da manhã chegaram e passaram numa sequência acrobática de olhos no telemóvel e na televisão, fingindo distrair-se. Tentando, desesperadamente, distrair-se.
As três da manhã apresentaram-se como uma luta estafante contra o sono. Não podia ir dormir sem saber que ele voltara para casa, que estava lá sozinho e que se lembrara de lhe mandar um beijo antes de dormir.
Às quatro da manhã soube que estava a fazer figura de parva e que era em vão que esperava, mas deixou que as cinco da manhã a encontrassem, ainda, numa sonolência não admitida, agarrando o telefone firmemente na mão direita, confirmando que tinha a internet e o som ligados.
Não era falha informática. Era falha humana. Dele ou dela, não sabia. Provavelmente dos dois, numa culpa muito diferente.
Deitou-se, soluçou forçando o choro que não a aliviou e adormeceu, por fim, com o telemóvel pousado na almofada.
Viu-os juntos; ouviu-lhe o riso de mulher despreocupada, segura de si e dele. Quis fugir e virar costas, mas a força magnética do nefasto proibido manteve-a de olhos pregados naquele par abraçado, que construía, diante de si, memórias que ficariam para sempre.
Acordou sobressaltada e dorida. Dormira umas quatro horas, não muito mais, e não descansara nada. Sentia-se sem forças nem vontade para encarar o dia que vivia para lá da persiana fechada, mas aterrorizava-a a ideia de adormecer e regressar àquela realidade do pesadelo.
Respirou o aroma do café até este estar demasiado frio para o conseguir beber. Aqueceu-o, sorveu um golo pouco satisfatório e deitou o resto no lava-loiças. No telemóvel ainda nada.
Fez duas torradas, mais para se distrair do que para matar a fome, e foi-se forçando a trinca-las diante de um desinteressante programa de televisão sobre qualquer coisa.
Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquele equilíbrio, uma vez que já pendia mais para o lado da loucura do que para o da sanidade mental. O seu lado racional exigia-lhe que se deixasse de tretas, de sonhos e de imaginações ensandecidas e que assumisse uma postura menos submissa aos seus caprichos mimados, que lhe diziam que talvez devesse aguentar um bocadinho mais. Só até o convencer… só até ele se convencer de que não precisava de mais ninguém.
A meio da tarde, os seus olhos inchados e sonolentos leram uma mensagem dele, exatamente nos moldes que tinha imaginado. Nada sobre a noite anterior, nada sobre gostar dela ou ter sentido a sua falta. Só um vago interesse em saber se dormira bem e se queria lanchar com ele.
Dormi bem, sim. Mas talvez devesse ter dormido um pouco mais ;), respondeu na mesma mensagem em que aceitou o convite para lanchar.
Que se lixe, pensara. Afinal de contas, hoje é comigo que ele quer estar.
Assim que o encontrou, abraçou-o com força, pousou-lhe um demorado beijo nos lábios e perguntou-lhe, numa animação ensaiada, sem saber de que tipo de resposta estava à espera:
- Divertiste-te, ontem?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

♥ segunda feira





We travel the world to escape from the usual
And take time to breathe
Everyhing that you tought me was beautiful
When I learned to see

That happiness is too far from home
You can take me alive, but don't leave me alone
It's the end of the world I need you to go
With me right now

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Apresentação do "Lado lunar" no Porto


Nesta sexta feira, dia 4 de dezembro, será feita uma sessão de apresentação do meu livro Lado lunar, na livraria Flâneur, pelas 21 horas. Será mais uma chávena de chá ou um copo de vinho com uma fatia de bolo entre amigos, enquanto se fala um pouco sobre os contos que compõem o livro.
Estão todos convidados a aparecer!

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

♥ segunda feira



A simple band of gold
Wrapped around my soul
Hard forgiving, hard forget

Then you came my way on a winter's day
Shouted loudly come out and play
Can't you tell I got news for you
Sun is shining and so are you

domingo, 29 de novembro de 2015

Conto "Aniquilada" (publicado na Maria Capaz)

Escrevi, para a Maria Capaz, um texto sobre a forma como o amor-próprio de uma mulher pode ser a única coisa que lhe resta e que a salva de uma situação degradante e de desrespeito perante si e perante os outros.
Mostro-vos abaixo um excerto, mas podem ler o texto integralmente na plataforma, seguindo este link.

"No entanto, ultimamente eram mais as noites em que adormecia tarde, já não embalada mas incomodada pelo ressonar desprendido dele, enquanto ali ao lado, a escassos centímetros por cima do mesmo lençol, Sofia se debatia, na corda bamba da felicidade e da infelicidade, da certeza e da incerteza. Naquela casa não havia espaço para uma Sofia mal-humorada, cansada ou angustiada. Não havia condições para exigir respeito nem para fazer valer a sua vontade. Naquela casa que se geria de acordo com os horários e as necessidades dele, uma Sofia submissa sonhava rente ao chão, engolia as suas próprias angústias e acabava a noite a lavar os tachos em que as cozinhara."

sábado, 28 de novembro de 2015

"A Ilíada e o nascimento da literatura", pel'O Javali de Vladivostok

Na faculdade tive uma das cadeiras mais interessantes de todos os tempos - literatura clássica -, sendo que o estudo se focou, sobretudo, nas obras de Homero. Conhecia-as por alto, mas a partir do momento em que tive de ler quer a Ilíada quer a Odisseia fiquei encantada com cada uma delas.
Ontem, um pouco por acaso, decidi ir a uma feira do livro noturna organizada pela Flâneur, que teve espaço para um momento de stand up comedy a cargo do auto-intitulado Javali de Vladivostok, aparentemente também conhecido por Bruno Henriques. 
Durante cerca de meia hora, num tom obviamente humorístico e com recurso a uma representação através de bonecos de lego, ele fez uma análise da Ilíada (aquela que inspirou o filme Tróia), trazendo-me à memória muitas das anotações que fui espalhando pelas páginas do meu exemplar há alguns anos atrás.
Para quem não sabe, a Ilíada relata a guerra de Tróia, iniciada quando a Helena de Esparta, casada com o rei Menelau, foi como que raptada de livre vontade por Páris, de Tróia. A genialidade da obra passa por que nos nos permite assistir ao arco todo dos dez anos de guerra naqueles 14 dias (de narração) e que trata principalmente a guerra interior de Aquiles que, por acaso, é um pulha e o Luke Skywalker é que é fixe. Na verdade, tal como o Bruno Henriques disse, transpondo-me novamente para uma sala de aulas da faculdade de letras em frente à minha professora, o Aquiles é o mais real dos heróis, o mais humano deles todos, pois revela fraquezas e dilemas morais, contrariando um pouco a ideia de herói como a perfeição que queremos atingir.
Penso que o Javali de Vladivostok cumpriu o seu propósito: saí dali bem-disposta com vontade de reler a história e de analisar, passado todo este tempo, os vários aspetos relevantes da obra.
A minha opinião é parcial, bem sei, mas tudo o que sejam iniciativas que aproximem o público da literatura são louváveis.


Apresentação do elenco principal


Quando Heitor matou Pátroclo e Aquiles regressou à guerra

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Voltar aos sítios onde fomos felizes

Dizem que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, sob o risco de já nada ser igual: as imagens, as pessoas, as sensações, os pensamentos e as emoções.
Lembro-me de pensar assim quando arrisquei voltar a Paris um ano após lá ter vivido. Tinha-me apaixonado a sério pela primeira vez, tinha feito fortes amizades, tinha vivido momentos inesquecíveis. Tinha deixado na cidade uma parte significativa de mim e tinha deixado que a Paris de 2007/2008 passasse a ser parte integrante de mim.
Nada era como dantes, de facto. Tinham-se passado vários meses e aquela Paris já não era a mesma de 2007/2008, tal como eu. A minha rotina estava de volta ao Porto, a maioria das pessoas que lá conhecera tinha regressado a casa e as que por lá permaneciam tinham-se descentrado do nosso ponto de encontro. Desta vez estava lá de férias, temporariamente. Já não era aquele o meu dia-a-dia nem a minha casa.
Mas eu sabia disso e, ainda que não tenha sido possível escapar à nostalgia, aproveitei a minha estadia numa perspetiva diferente: a de alguém que já lá tinha sido feliz.
Talvez a expressão correta seja que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes com expectativas elevadas, sob o risco de saírem defraudadas e sermos incapazes de desfrutar desse regresso.
Ontem, sem ter feito planos para tal, fui novamente a um sítio onde fui muito feliz, que me ocupou a maior parte dos dias durante um relativamente longo período de tempo.
À entrada receei sentir um murro no estômago ou palpitações nervosas na viagem de retrocesso no tempo. Todavia, uma vez que não tinha podido dedicar-me sequer a criar expectativas, tratou-se apenas de fazer um mesmo caminho, ver algumas das mesmas caras, repetir um pouco de uma rotina há muito deixada para trás e que me trouxe ótimas recordações e sensações que tinham sido já postas de lado.
Devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, sim. São esses os nossos refúgios seguros, nem que seja apenas no nosso imaginário.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Sara vai ao P3 (segunda volta) - "Põe quanto és no mínimo que fazes"

O meu primeiro contacto consciente com Fernando Pessoa, foi no 12º ano, há já dez anos, pela voz de uma professora completamente apaixonada pelo que fazia e pelo que ensinava.
Não é a coisa mais rara encontrar um profissional que desempenhe o seu dia-a-dia com vontade e orgulho, mas a verdade é que um professor inspirador deixa as suas marcas, é louvável e merece ser recordado mesmo passados tantos anos, porque foi/é, sem dúvida, parte importante da nossa criação enquanto pessoas.
Numa espécie de homenagem, escrevi uma crónica baseada num poema de Ricardo Reis, intitulada Sê todo em cada coisa, publicada hoje pelo P3.

Para lerem o texto, basta clickarem neste link.

♥ segunda feira



Do you feel the lightning inside of you?
Will you follow through if I fall for you?
Don't look down
Up this high, we'll never hit the ground

I kinda feel like I, feel like I saw the light
You got me way up, a thousand miles
Can we stay right here in this atmosphere
Or are you afraid to fall?

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Efemeridade

Era cedo – os primeiros raios de sol começavam a iluminar a rua ainda fria e húmida pela noite de outono, para lá das persianas fechadas. Abriu os olhos para o escuro, sentindo-se quente e segura, com o braço dele pousado distraidamente por cima da sua barriga.
Sorriu e quis poder tirar uma fotografia para usar como prova para ele, que dizia sempre ser incapaz de abraçar alguém durante o sono. Em vez disso, voltou-se para ele muito devagar, para não o acordar, e devolveu-lhe o abraço. Esfregou levemente o nariz no pescoço dele, recebendo laivos do seu perfume. Apertou-o com força, mesmo consciente de que tal gesto poderia desfazer aquele emaranhado de corpos, a fim de marcar em si tal momento, tão raro, em que todo ele estava em contacto com ela, sem enunciar palavras que lhe afligissem o peito, sem que ela pudesse fazer perguntas cujas respostas não queria ouvir.
Fechou os olhos, sem sono, querendo absorver e perpetuar a sensação de pertencerem um ao outro. Era efémero, sabia disso. Não podia dedicar-se demasiado a esse pensamento, pois precisava de respirar, talvez até de voltar a dormir durante mais uma ou duas horas. No entanto, pressentia, quase ao ponto da certeza, que o seu tempo estava a chegar ao fim. Teriam mais duas semanas. Uma adicional, talvez, em que ela tentaria resolver as coisas, perceber porque se teria ele afastado, embora soubesse a resposta: passaria a ter os dias mais livres, teria menos tempo para ela.
Aquele oximoro doía-lhe na pele, na alma e na cabeça. Fizera tudo para ser suficiente para ele, conseguira-o, finalmente, quando as circunstâncias se haviam conjugado favoravelmente, mas aquela pausa tinha um final à vista e, com ela, levaria a sua suficiência.
Exagerara. Permitira-se deixar controlar pela espiral de pensamentos dois passos à frente, pelo que lhe faltava agora o ar, os olhos humedecidos ardiam-lhe e a cabeça latejava de medos. Não sabia como iria voltar à vida sem ele, sem o saber disponível e à sua espera.
Não ia conseguir voltar a dormir.
Apertou-o um pouco mais, inspirou fundo e murmurou muito baixinho, não fosse ele ouvir:
- Amo-te. És a melhor parte de mim e o melhor do meu dia. És a melhor visão do meu futuro… quem me dera ser a tua.
Libertou-se do peso dele, deslizando pela cama fora.
Desceu as escadas em direção à cozinha, por onde a claridade daquela manhã antecipava um dia frio, de horas perdidas no chão, em cima de um cobertor, em frente à lareira acesa.
Imaginava-se parte daquela casa, das rotinas, do sobe e desce típico da azáfama familiar. Sabia que encaixava ali, sentia-se em casa na casa que não era a sua, à qual conhecia os cantos e as manhas. Havia pequenas marcas suas, mesmo muito ténues, que lhe davam, de vez em quando, a ilusão de que um dia não voltaria a sair de lá.
Era ele o homem da sua vida, era aquela a vida que escolhera e escolheria para si, mas que lhe era vedada uma e outra vez, como se errasse perante as decisões do Universo e este fosse pegando nela para a colocar novamente no caminho do desígnio que era suposto cumprir.
Uma e outra e outra vez.
Sabendo que tinha os dias contados, ao mesmo tempo que reaprendia a viver sem ele precisava de – devia-se – aproveitar cada instante em que respiravam o mesmo ar, já que podia ser o derradeiro.
Deitou café em duas canecas, barrou manteiga em quatro torradas, cortou pedaços de fruta para uma taça grande e subiu as escadas de volta ao quarto, com o tabuleiro do pequeno-almoço nos braços. Ao transpor a porta, deu com ele sentado na cama a ler, iluminado pela luz que entrava pela persiana aberta até meio.
- Ia zangar-me contigo por não estares aqui – começou. – Mas depois senti o cheiro do café e, com a fome com que estou, achei melhor deixar-te alimentar-me.
Sentou-se ao lado dele na cama, feliz.
- Adoro alimentar-te.
Deixa-me alimentar-te para o resto da vida. Foi o pedido que calou, engolido num soluço.
Deixou as torradas quase intactas e o café bebido apenas até meio. Comer era uma perda de tempo, especialmente quando o estômago se fechara e não parecia ir colaborar tão cedo.
- Que se passa contigo? – perguntou ele.
- Nada – respondeu ela, num fio de voz. – Fazes-me feliz.
A ideia de desapareceres é que me destrói, pensou.
Ele puxou-a para si e, no quarto que um dia pensara vir a ser o seu, amaram-se. Ou assim lhe pareceu, sufocada pelo peso dele à sua volta, perdida no aroma do seu corpo, com o coração totalmente entregue a ele.
Não sabia como ia proteger-se, como ia lidar com a ausência dele, uma vez mais. Não depois do sonho, de várias utópicas semanas de romance quase real. Parecia real. Fora real.
Era fraca demais para o ver virar-lhe costas e virar-lhas também, não tinha nada a que se agarrar, que a mantivesse viva dia após dia, digna de si.

Duas semanas mais tarde, nua, no chão da sua casa de banho, teve uma decisão para tomar. A mais importante até então. Provavelmente a mais importante daí para a frente.
Por ironia, a pessoa que a ajudaria a resolver uma encruzilhada assim era precisamente aquela com quem não sabia se queria partilhar aquela indefinição. Não estava pronta, mas queria-o, mais do que qualquer outra coisa na vida.
Sentia-se fraca, com a cabeça vazia, incapaz de raciocinar e de desempenhar a mais básica das tarefas, como tomar duche. Mal disposta, arrastou-se para debaixo da água quente.
Aquela que previa vir a ser a decisão dele era-lhe inconcebível. Seria dolorosa demais em todos os sentidos, destrui-la-ia um pouco mais deixando-a sem nada, vazia dele, de si, de sonhos e de qualquer dignidade. Estava sozinha, escolheu.
Bateu-lhe à porta de casa com a desculpa de lá ter deixado um casaco. Longe do olhar dele, recolheu as poucas coisas que ali fora deixando, abraçou-o com a força de quem sabe ser a última vez e foi-se embora, deixando para trás um adeus, o seu grande amor e a vida que nunca lhe pertencera.
Esperava-a um futuro diferente daquele que alguma vez teria pedido. Não estaria, todavia, sozinha: se tudo corresse bem, em breve começaria uma nova vida com o fruto daquela relação. E nunca mais teria de despedir-se dele.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Procurei-te

Procurei-te, sabes? Talvez não no verdadeiro sentido da palavra, de meter pés ao caminho e calcar terreno, levantar pedras, dobrar esquinas até te encontrar, mas procurei-te.
Assim que soube, naquela fatídica e fatal sexta feira, o que estava a acontecer, o meu primeiro pensamento foi, admito, para mim, para a vida que construí em Paris e para as memórias que lá guardei, espalhadas pelas pontes, pelos museus, pelo XIVe arrondissement e pela rede de metro, de RER e de Tram.
O segundo... foi para ti.
Procurei-te em mim, mesmo sabendo que desde o dia em que precisei de retirar-te de mim não iria conseguir encontrar-te. Quando tens um melhor amigo, praticamente irmão, sabes descobri-lo e pressenti-lo bem ou mal sem teres de trocar uma palavra que seja com ele nesse momento, mas, (in)felizmente, essa ligação desaparece quando recuas, quando te proteges e te refugias em ti, longe do outro. O canal de comunicação quebra e dificilmente volta a funcionar.
Tarde na noite - talvez se pudesse chamar já madrugada -, a televisão fazia-me chegar imagens de gente devastada pelo que tinha visto, de corpos inertes no chão tapados por lençóis brancos. Penso que foi nessa altura que senti uma vontade crescente de chorar por mim, por eles... e por ti, que lá estarias, algures. Podias ser uma das que ficaria para sempre marcada pelo testemunho direto, podias ser uma das que perderam alguém, podias ser uma das que não poderiam mais contar a sua história.
Por todo o lado procurei uma ligação a ti. Questionava se cada vítima seria tua amiga, colega ou familiar. Tentei sentir-te em cada local filmado pelos diversos canais presentes.
Digo que não senti, mas se calhar foi essa ausência de pressentimento que me permitiu dormir até à manhã seguinte relativamente tranquila, até ter sabido, finalmente, que tinhas sido uma das sortudas a quem os acontecimentos chegaram através de um ecrã. 
Obrigada.
Pouco depois li o que tinhas a dizer sobre o assunto e percebi que aquela que era a minha cidade, aquela que te trouxe, também a ti, para a minha vida, é agora a tua cidade, a tua casa, onde é suposto continuares a ser feliz. E temi que não voltasses a encará-la dessa forma.
Hoje, no entanto, dei como falhada a minha missão de te excluir de mim quando constatei que ainda te conheço. Procurei-te e não foi fácil encontrar-te, mas apazigua-me a ideia de que aquela que já foi a minha casa (e que, de certa forma, ainda o é um pouco, quando aquela onde vivo no mundo real não me é suficiente) é, agora, a tua. E aí posso voltar a encontrar-te.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

A normalidade

Cheguei a Paris pela primeira vez na noite de 27 de setembro de 2007. Estúpida e ignorantemente, não estava nos meus planos visitá-la, especialmente porque, apesar de adorar a língua francesa – tanto que a escolhi para a minha área de estudos –, permitira-me criar e alimentar uma ideia baseada em clichés preconceituosos, que mais tarde se provou errada, de que todos os franceses são arrogantes e egocêntricos.
Mal saí do avião fui acometida por uma enorme sensação de pânico que acompanhou a pergunta histérica: que é que eu vim para cá fazer sozinha durante um ano?
Quis vir embora por duas ou três vezes, mas Paris revelou-se, ao longo dos meses, uma cidade de encantos indescritíveis. Passei a sentir-me quase tão em casa como no Porto, fui conhecendo os cantos menos turísticos, segui rotinas, pisei os mesmos passeios várias vezes sem conta e, sem eu sequer ter planeado, Paris marcou o início de uma das melhores fases da minha vida, que trouxe comigo de volta para o Porto, que ficará para sempre gravada em mim. Ainda hoje, quase dez anos depois, consigo pensar se não fosse Paris não estava aqui hoje, com esta pessoa, a fazer isto.
Aquela cidade, onde mesmo os lugares feios e sujos são parte de um carisma inigualável, habitada por gente agradável, bem arranjada, prestável, que acolhe, agora, uma diversidade imensa de culturas, nacionalidades e religiões, conquistou as minhas barreiras das ideias pré-concebidas de tal forma que pensar nela ou apenas no seu nome, ou rever imagens minhas ou de outros com Paris como pano de fundo, me traz uma estranha sensação de nostalgia de uma era perdida, que não voltará nunca, onde tudo era perfeito e eu tinha o mundo todo diante de mim, com todo o tempo disponível para o conquistar.


Na sexta-feira estava a jantar com uns amigos que agora o são, embora não diretamente, apenas graças à minha estadia em Paris quando, mesmo sem os óculos, vi na televisão as imagens horripilantes dos atentados. Penso que não há um nome para descrever aquilo que senti: uma espécie de apatia, como se me recusasse a aceitar que era real, envolvendo o nojo típico de quando algum estranho invade aquilo que é nosso, lhe remexe e altera a ordem das coisas lá dentro. O estômago doía pelas pessoas que viam aqueles cenários em primeira mão.
Um pouco mais tarde, sentada no sofá no conforto de uma casa, com a televisão ligada, saltei de canal em canal, onde desfilavam imagens, reportagens, noções, comentários e testemunhos dos acontecimentos daquela noite.
Tive vontade de chorar pelos mortos, pelos feridos, por Paris, pelo mundo, mas não consegui fazê-lo.
No dia seguinte, as imagens, os vídeos e as notícias continuavam focadas apenas nos ataques a Paris, na subversão dos direitos humanos em prol de um fundamentalismo. Em nome de nada e da aniquilação do todo que é o ser humano.
Dizem os parisienses, os franceses e todos nós que temos o misto de sorte e de infelicidade de assistir impotentes à evolução do terrorismo, que não deixaremos o medo vencer-nos.
Mas será mesmo assim, quando já nem uma lâmpada que rebenta é apenas tida como tal? Como se entra numa sala de espetáculos sem pensar no que aconteceu e no que pode acontecer-nos a nós? Como se chega a sexta-feira e se vai beber um copo sem olhar por cima do ombro? Como se volta à normalidade?
Sim, porque esta não pode ser a nova normalidade…

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Flâneur - um conceito de livraria diferente

A bicicleta não é só um elemento decorativo: é o meio de transporte para entregas de livros dentro da área do Porto
Baudelaire ensinou-nos que um flâneur é uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la, isto é, aquele que deambula para adquirir conhecimentos, experiências e registar imagens e vivências.
Foi um pouco desta premissa que surgiu a livraria Flâneur: tudo começou com o amor pelos livros e uma bicicleta para os fazer chegar a quem os quisesse mas não tivesse como ir ter com eles.
No entanto, e felizmente, a Flâneur materializou-se num antigo edifício na zona da Constituição, que é acolhedor desde a porta até ao fundo da sala. As paredes recheadas de livros, como seria de esperar, oferecem-nos uma ótima companhia para um bule de chá e uma fatia de bolo caseiro (o de coco é delicioso!).
O menu não se fica por aí e é tudo servido com uma familiaridade e simpatia únicas, quase como se tivéssemos ido a casa de um amigo que nos quis fazer sentir bem-vindos, que nos quis mostrar o que de melhor há na literatura e, ainda, que dá o passo extra para nos ajudar no que for preciso, para colaborar de forma a que venhamos embora com a sensação de que o coração ficou preenchido e de que quando quisermos voltar nem é preciso bater à porta, porque ela já está aberta e há um agradável som de sininhos que assinala a nossa entrada.
Num ótimo aproveitamento do espaço, a Flâneur dinamiza, ainda, diversos eventos esporádicos ou iterativos, como o brunch todos os sábados, as tardes de tricot, o Yoga ou as sessões de poesia.





Livraria Flâneur: http://www.flaneur.pt/
Morada:  Rua Ribeiro de Sousa 225-229
Horário: Terça a Domingo, das 10:00 às 20:00
E-mail: livraria@flaneur.pt

♥ segunda feira



I want a love
That the universe
Can never stop
Can never hurt
I want a love that will last
After this world is our past
A love that no time could erase
A love in a higher place

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Magusto

Num estado semi febril provocado pelo cansaço acumulado, desligou o computador e saiu para a escuridão cerrada da rua, deixando para trás a iluminação branca do escritório e a algazarra dos colegas, típica de cada final de dia.
Sentou-se no carro, isolada do mundo. Pousou as mãos no volante, apoiou a testa nas costas das mãos e, de olhos fechados, pretendendo fugir de si e do que a rodeava, foi, no entanto, incapaz de escapar ao remoinho da angústia que lhe consumia as entranhas. Sentia-se sozinha, perdida, sem rumo. Não via uma placa, sequer, que lhe desse uma pista do caminho a seguir.
Quase a contra vontade, dirigiu-se à praia. Estacionou o carro virado para o mar e esperou que este fizesse a sua magia e lhe trouxesse a tranquilidade e paz de alma que, ultimamente, se encarregava de lhe conferir. De janelas abertas, inspirou fundo o ar fresco e salgado. Sentiu o nariz arder ligeiramente, pelo que o esfregou nos dedos.
Ao seu redor, ia testemunhando as luzes das casas acenderem-se, assinalando o retomar da vida familiar no final de longas horas de trabalho e de escola. Imaginou aquelas famílias reunidas para jantar ao som de relatos das horas de separação, talvez até de gargalhadas e de planos para o dia seguinte.
Colocou os dois braços ao redor do seu próprio corpo, num reflexo incondicionado de busca de calor humano. Faltava-lhe aquilo de que mais precisava: recuperar aquela sensação de pertença e de entendimento. Queria, mais do que tudo, ser parte de algo, de alguém, de uma família que a esperasse, que precisasse dela e que lhe devolvesse a dedicação e o carinho que tinha para lhe dar.
Era um dia quase banal, não fosse o cheiro das castanhas assadas pelos vendedores ambulantes num pano de fundo de decorações de Natal precoces. De vez em quando detetava-se, também, o fumo escapado pelas chaminés das lareiras caseiras, diante das quais aquelas famílias que não via estendiam uma manta sobre a qual se deitavam a comer castanhas com geleia, manteiga e requeijão e a beber jeropiga ou um copo de vinho. Possivelmente – provavelmente, na verdade –, não era nada disso que se passava dentro de qualquer uma daquelas casas, mas era isso que, neste ano, queria ter. Muito mais pelo que significava do que pelo ato em si.
Toda a gente tinha alguém, toda a gente fazia parte de algo. Menos ela, contando com a sua própria companhia, apenas, e com a do mar, que tinha mais que fazer do que prestar-lhe atenção.
Fez marcha atrás, pôs o carro em movimento e encaminhou-se para casa, mentalizando-se de que não temos aquilo que queremos, mas aquilo que nos calha na roleta russa da vida. De nada lhe serviria sonhar, ou rezar ou acreditar em superstições.
Mal meteu a chave na porta, antes ainda de atirar com os sapatos para um canto, ouviu as vozes atropeladas na sala de jantar. Sorriu: eles não tinham consciência da sorte que tinham, porque a davam por garantida. Não sabiam o quanto podiam não ter agora, nem se apercebiam da conquista enorme que é construir, do nada, de uma pessoa só, uma família.
Abriu a porta de acesso à sala e deu com eles perdidos em conversas encadeadas, algumas sem grande sentido, arrancando risos e comentários divertidos. Diante deles, sobre a toalha colorida da mesa, estava uma grande taça de castanhas, um prato com marmelada e queijo, uma pequena taça já quase sem geleia e uma garrafa ainda praticamente cheia de licor.
Sorriu um pouco mais, deixando lá longe, junto ao mar, aquela pessoa perdida e isolada no mundo:
- Há castanhas!
A admiração da mãe foi traduzida pela pergunta do irmão mais velho:
- Mas tu afinal gostas de castanhas?
Abanou a cabeça, mantendo o sorriso:
- Não, não consigo sequer suportar o cheiro das castanhas sem casca.
À volta da mesa, quatro pares de olhos fixaram-na confusos durante alguns segundos, até que alguém retomou a conversa que ela tinha interrompido.
Aquela família não era obra sua, não era o seu legado. Mas era a sua, com as suas próprias tradições, as suas próprias formas de partilhar os acontecimentos do dia e de planear o dia seguinte.
E o seu som preferido era, sem dúvida, o das gargalhadas familiares. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Tears in heaven"

Nos primeiros dias de novembro, quando a chuva e a escuridão aceitaram ceder umas tréguas, o sol que voltou a queimar a areia – como se fosse novamente verão em terra – contrastava com a revolução do mar, que fugia, puxado pela própria corrente, em direção ao inverno.
Havia quem lhe chamasse verão de São Martinho, mas havia, também, quem não se perdesse em toponímias e aproveitasse, apenas, o calor fora de horas que relembrava aos mais esquecidos o privilégio que é viver no Porto.
Mariana passou a comprar uma sandes, estendeu uma toalha na praia do Aterro e pousou os pés na areia enganadoramente fria. De vez em quando, o seu silêncio era interrompido por conversas esporádicas de grupos que passavam a correr no passadiço de madeira acima da sua cabeça. Seguia-os com os olhos até os perder de vista e voltava a fixá-los nas ondas, que cresciam lentamente e rebentavam com fúria a escassos metros dos seus pés.
Fingia refletir sobre a vida. Para dizer a verdade, o pensamento tentava focar-se nas decisões que tinha para tomar, no rumo que tinha de definir, mas acabava por ser distraído pelo pescador que montava a sua cana ou pelas gaivotas que disputavam alimento. Vencida, fechava os olhos para ficar a ouvir, apenas, o mar, numa tentativa de algo semelhante a meditação, antes de voltar a concentrar-se em si, no que lhe faltava e no que precisava de fazer.
Foi despertada desse estado de indolência por um som estranho trazido pelo vento. Abriu os olhos incomodada, sentou-se direita e perscrutou a praia, em busca daquele que ousara importuná-la no seu refúgio. Reparou num homem que avançava pela orla do mar, com as calças arregaçadas pela canela e os pés descalços enfiados na areia molhada, de vez em quando submerso pelos restos das ondas que chegavam até si. Vinha de norte e havia uma música forte, semelhante a ópera, que o acompanhava.
Mariana ergueu-se, zangada com a interrupção. Era, realmente, ópera, o som que lhe chegava. E, por alguma razão, aquele desconhecido achara razoável levar um rádio para um local público, ligá-lo e obrigar toda a gente a ouvir.
Avançou alguns passos na direção dele mas estacou ao aperceber-se dos gestos feitos pelo homem e que acompanhavam a música. Não havia rádio algum, nem nenhum outro aparelho semelhante: era o homem que cantava, encantando-a com o som da sua voz forte e potente.
Aproximou-se um pouco mais, receosa de o afastar, até conseguir ver que pela cara abaixo lhe brilhavam dois sulcos húmidos que percebeu terem origem nos olhos que o homem fechava com força.
Ficou ali parada, debatendo-se contra o ímpeto urgente de descobrir quem era ele, o que fazia ali, porque chorava, para quem cantava.
Viu-o, então, enfiar a mão direita no bolso das calças e de lá retirar uma flor que não conseguiu distinguir. Afagou-lhe as pétalas cuidadosamente, como se alisa o papel de embrulho de um presente que se vai oferecer, e lançou-a ao mar. E ali ficou, a vê-la ser disputada pelas vagas, acompanhando aquela dança com uma música que Mariana achava conhecer, mas cuja interpretação tão pessoal cantada pelo homem a impedia de identificar.
No momento em que percebeu a letra, trauteou-a em silêncio, com os olhos inundados pelas lágrimas:

I'll find my way
Through night and day
'Cause I know I just can't stay
Here in Heaven

Time can bring you down
Time can bend your knees
Time can break your heart
Have you begging please

Begging please

♥ segunda feira





I'm prepared for this
I never shoot to miss
But I feel like a storm is coming
If I'm gonna make it through the day
Then there's no more use in running
This is something I gotta face



If I risk it all
Could you break my fall?

How do I live? How do I breathe?
When you're not here I'm suffocating
I want to feel love, run through my blood
Tell me is this where I give it all up?
For you I have to risk it all
Cause the writing's on the wall

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Sara vai ao P3 - Umas noções básicas sobre o papel do tradutor

Escrever contos e reflexões é uma das minhas atividades de eleição, a que me dedico em quase todos os tempos livres, por mais fragmentados que sejam.
Uma das minhas grandes paixões é, sem dúvida, a tradução: é aquilo que escolher fazer todos os dias úteis da minha vida.
No P3 encontrei o local ideal para partilhar uma das minhas visões sobre a tradução, esperando responder a uma das perguntas que mais me fazem quando digo qual é a minha profissão: mas o google não faz isso automaticamente?

Quem quiser ler o artigo pode encontrá-lo seguindo o link abaixo:

Minuciosa angústia

Mónica tinha a vida planeada ao detalhe numa perspetiva de médio e de longo prazo. Se lhe perguntassem – na verdade não era necessário, já que os seus planos eram do conhecimento geral do público – em que ponto estaria a sua vida dali a um ano e meio, mesmo ainda sem um anel no dedo, sabia que estaria a casar. Faria uma lua-de-mel de um mês pela América Central de mochila às costas e quando voltasse abriria um centro de estudos na cave de casa dos pais. Um ano e meio depois teria o primeiro filho. Dois anos mais tarde o segundo e, se tudo corresse bem, teria o terceiro passados outros dois anos. Não havia muito por onde falhar, pelo que vivia tranquilamente cada dia, com a certeza reconfortante de que as carruagens deslizavam sem sobressaltos pelos carris traçados, abraçando as rotinas tranquilas de uma vida calma e preenchida pelo trabalho, pelos amigos e pelo seu grande amor.
Tal como combinado, um ano e meio mais tarde disse o sim em frente a todas as pessoas importantes para si, envergando o vestido que idealizara quando tinha dez anos. Por razões que não são relevantes para o efeito, a lua-de-mel tivera de ser adiada para o ano seguinte, mas não tinha mal: seria a celebração ideal do primeiro ano de casamento.
Todavia, alguém que detalha com este pormenor a planificação da sua vida, deveria ter detetado o cheiro do descarrilamento iminente que chegou numa bela tarde de março, ainda durante aquele ano zero de casamento, quando o seu recém-marido lhe comunicou que tinha uma amante. Bem, tinha tido, porque acabara por perceber que era Mónica a mulher da sua vida.
- Tarde demais – atirara-lhe ela, fingindo todo o amor-próprio que não sentia naquele momento.
A lua-de-mel ficou definitivamente em stand-by e do futuro centro de estudos fez a sua casa. Sem ter tempo sequer para refletir, tinha o seu mundo a girar ininterruptamente sobre as suas costas, pesando todos os dias mais um pouco, ao ponto de lhe provocar dores insuportáveis. De repente já não havia carris, nem sequer um trilho ou um troço de caminho que pudesse seguir e a única rotina que passou a ter era a de todas as manhãs ir para o trabalho.
Para além disso, sentia-se perdida. Todos os dias desejava intensamente arranjar um trabalho fora daquele colégio opressivo e procurava forças – que tardavam a chegar – para ir viver sozinha. Estava perdida, fora de si, longe de si, sem qualquer elemento familiar da sua vida anterior, agora que não podia contar com os amigos que, já sendo originalmente do ex-marido, lhe tinham sido lealmente roubados.
Sentia-se sozinha, presa numa teia sufocante sem ninguém, incapaz de vislumbrar num ponto ao longe, por muito longínquo que fosse esse lugar, uma saída triunfante.
Sabia que passaria o resto da vida assim, impossibilitada de voltar a construir uma família. Teve essa certeza quando, na altura prevista, não teve o primeiro filho. Já só poderia tentar o segundo e o terceiro, mas com quem?
Delineou, então, um plano B: se dali a cinco anos continuasse a ser a sua única família, teria um filho por inseminação artificial. Nascera para ser mãe. Tinha a certeza de que o propósito da sua existência, a sua maior vocação, era amar e criar seres humanos desde o primeiro momento da sua vinda ao mundo para se tornarem pessoas felizes, capazes de grandes feitos e de trazer algo de bom à humanidade.
As lágrimas que vertia eram de desespero e angústia ante a possibilidade de o potencial de maternidade poder estar-lhe definitivamente vedado por uma má escolha no passado e, se fosse extremamente sincera consigo mesma, nem esse plano B a reconfortava: não só ainda faltava demasiado tempo, como queria poder partilhar a vida e todas as suas componentes com um homem que amasse e que a amasse. Tal como, um dia, tivera a possibilidade de descobrir.
Era por isso que não fazia qualquer esforço no sentido de repor uma rotina no seu dia-a-dia, para incompreensão da mãe e repúdio do pai: a rotina aprisioná-la-ia dentro de si mesma, no seu pequeno mundo vazio de gente, de caras novas, de embriões de algo seu.
Chegava ao final de cada dia esgotada, incapaz de segurar os olhos abertos e frustrada por se terem passado mais vinte e quatro horas de um esforço vão.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Paradoxo da inocência

Era um sábado pouco depois da mudança da hora do final de outubro, pelo que às seis horas da tarde já era noite cerrada, cuja escuridão por si só já intensa era acentuada pela chuva que começara a cair de manhã e não parara ainda.
Entrei numa dos muitos enormes armazéns geridos por imigrantes chineses que vendem desde vernizes a tangas, passando por missangas, carteiras, canecas e coadores. Deambulei pelos corredores só a ver e, ao virar uma esquina, ouvi uma voz fininha de criança a perguntar:
- Como te chamas?
Parei a minha caminhada ao dar de caras com uma menina de olhos rasgados, cabelos negros muito lisos e repas caídas sobre as pestanas. Sentada numa montanha de tapetes coloridos e com os pés enfiados debaixo de um banco azul de plástico, dava trincas muito pequeninas numa fatia de pera e olhava-me atenta.
Respondi-lhe, pronta para seguir em frente a encher os olhos de molduras e caixas de madeira com nomes recortados.
Mas ela tinha um questionário improvisado à espera das minhas respostas. Num instante estávamos num diálogo complexo, ela numa voz de menina de cinco anos com um português ainda débil que ia intercalando com chinês (como ela própria lhe chamou) quando a mãe lhe gritava algo do fundo da loja.
A Bia era a mais nova de três filhos, mas não por muito tempo. Olhei para a mãe, com uma barriga ainda muito pouco notória, e senti uma vontade imensa de poder passar pelo mesmo que ela; de poder ter uma data de miúdos à minha volta numa fria tarde de sábado de outono.
Não pude perder-me muito tempo nos meus devaneios sobre se alguma vez virei a ser mãe – e que, verdade seja dita, não me levariam a conclusão nenhuma – porque a Bia passou a explicar-me que quem vai às compras deve sempre ter uma lista, para saber o que vai comprar. Entre risinhos e expressões envergonhadas de quem está a falar com uma estranha, contou-me que já sabe fazer o P maiúsculo e minúsculo, que passa os fins-de-semana na loja que também é a casa dela e que, às vezes, faz os trabalhos de casa e vê televisão.
A certa altura levantou-se, correu até ao final do corredor, para dizer algo ao irmão, riu-se, ofereceu-me uma fatia de pera, despediu-se de mim e voltou a sentar-se no monte de tapetes, com os pés debaixo do banco azul, a acabar de comer enquanto brincava com uma bola.
Ali estava eu, insatisfeita apesar de tantos projetos em mãos, de tantos filmes para ver, de tantos livros para ler, de tantas pessoas com quem conversar. E ali estava ela, entretida e divertida com o pouco que tinha, naquele momento, à disposição, sem parecer precisar de mais.