sábado, 24 de outubro de 2015

Boa sorte e até um dia

Ao fim de todos aqueles anos, viu as paredes despidas, tal como no dia em que as vira pela primeira vez, um pouco mais sujas, cativeiros de memórias e de histórias irrecuperáveis pelo andar dos dias. O quadro em tons de vermelho e preto que correra meio mundo para adquirir estava já embalado, a caminho do seu novo destino: um armazém nos arredores da cidade, suspenso no tempo até que lhe fosse indicado um novo rumo.
Rodou sobre si mesmo, inspirando o odor característico daquele hall onde tantas pessoas se haviam cruzado, onde o verniz já baço dos tacos revelava incomensuráveis passagens de sapatos. Tinha lágrimas de nostalgia, apreensão e excitação prontas para saltar, assim que lhes desse ordem. Em vez disso, apertou o cachecol aconchegado ao pescoço, fechou o blusão castanho de pele, soltou um suspiro e arrastou as duas malas cheias pela porta em direção ao carro.
Lá fora chovia sobre um dia cinzento, pelo que o movimento na rua era escasso. Engoliu o nó que se lhe formava na garganta e colocou as mãos no volante daquele carro dos anos 60, herdado do avô, que o guiava para qualquer lado desde os seus vinte anos. Aquele dia chegara mesmo.
Tinha começado a pensar nele um ano antes - quando ainda faltava tanto que a ideia era um pouco abstrata demais para poder ser realmente concretizada. Falara dela a dois amigos numa esplanada por cima do rio, acompanhado de um chá fresco num final de verão. Fora aí que começara a tornar-se - mais ou menos - real.
Pensara na decisão todos os dias, mentalizando-se de que não havia volta a dar. Não porque, de facto, não houvesse, mas porque não queria que houvesse. Precisava daquela mudança para que o ar voltasse a passar puro pelos pulmões, para que as noites voltassem a ser de sono, para que os fantasmas não continuassem a atormentá-lo a cada momento, impiedosos e gozões.
E aqui estava ele, naquele domingo triste, tendo apenas por companhia a sua vida toda enfiada no porta-bagagens.
Não o sabia, mas estava pronto, apesar do receio do desconhecido.
Ligou o carro, meteu a primeira e arrancou, muito devagar, ao contrário do que era habitual.
Os pneus deslizaram lentamente pelos paralelos escorregadios, deixando para trás o conforto que sempre conhecera, as pessoas que o tinham acompanhado desde o início e o projeto que iniciara no começo da sua vida adulta, quando o seu cabelo era, ainda, todo da mesma cor, para abraçar um novo projeto não totalmente delineado.
Meteu a segunda e acelerou, dirigindo-se para auto-estrada.
De janelas abertas até meio, a 160 km/h, com o rádio ligado numa qualquer música abafada pelo som do vento, soltou uma gargalhada vinda não se sabe de onde, mas que não conseguiu controlar.

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