sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Efemeridade

Era cedo – os primeiros raios de sol começavam a iluminar a rua ainda fria e húmida pela noite de outono, para lá das persianas fechadas. Abriu os olhos para o escuro, sentindo-se quente e segura, com o braço dele pousado distraidamente por cima da sua barriga.
Sorriu e quis poder tirar uma fotografia para usar como prova para ele, que dizia sempre ser incapaz de abraçar alguém durante o sono. Em vez disso, voltou-se para ele muito devagar, para não o acordar, e devolveu-lhe o abraço. Esfregou levemente o nariz no pescoço dele, recebendo laivos do seu perfume. Apertou-o com força, mesmo consciente de que tal gesto poderia desfazer aquele emaranhado de corpos, a fim de marcar em si tal momento, tão raro, em que todo ele estava em contacto com ela, sem enunciar palavras que lhe afligissem o peito, sem que ela pudesse fazer perguntas cujas respostas não queria ouvir.
Fechou os olhos, sem sono, querendo absorver e perpetuar a sensação de pertencerem um ao outro. Era efémero, sabia disso. Não podia dedicar-se demasiado a esse pensamento, pois precisava de respirar, talvez até de voltar a dormir durante mais uma ou duas horas. No entanto, pressentia, quase ao ponto da certeza, que o seu tempo estava a chegar ao fim. Teriam mais duas semanas. Uma adicional, talvez, em que ela tentaria resolver as coisas, perceber porque se teria ele afastado, embora soubesse a resposta: passaria a ter os dias mais livres, teria menos tempo para ela.
Aquele oximoro doía-lhe na pele, na alma e na cabeça. Fizera tudo para ser suficiente para ele, conseguira-o, finalmente, quando as circunstâncias se haviam conjugado favoravelmente, mas aquela pausa tinha um final à vista e, com ela, levaria a sua suficiência.
Exagerara. Permitira-se deixar controlar pela espiral de pensamentos dois passos à frente, pelo que lhe faltava agora o ar, os olhos humedecidos ardiam-lhe e a cabeça latejava de medos. Não sabia como iria voltar à vida sem ele, sem o saber disponível e à sua espera.
Não ia conseguir voltar a dormir.
Apertou-o um pouco mais, inspirou fundo e murmurou muito baixinho, não fosse ele ouvir:
- Amo-te. És a melhor parte de mim e o melhor do meu dia. És a melhor visão do meu futuro… quem me dera ser a tua.
Libertou-se do peso dele, deslizando pela cama fora.
Desceu as escadas em direção à cozinha, por onde a claridade daquela manhã antecipava um dia frio, de horas perdidas no chão, em cima de um cobertor, em frente à lareira acesa.
Imaginava-se parte daquela casa, das rotinas, do sobe e desce típico da azáfama familiar. Sabia que encaixava ali, sentia-se em casa na casa que não era a sua, à qual conhecia os cantos e as manhas. Havia pequenas marcas suas, mesmo muito ténues, que lhe davam, de vez em quando, a ilusão de que um dia não voltaria a sair de lá.
Era ele o homem da sua vida, era aquela a vida que escolhera e escolheria para si, mas que lhe era vedada uma e outra vez, como se errasse perante as decisões do Universo e este fosse pegando nela para a colocar novamente no caminho do desígnio que era suposto cumprir.
Uma e outra e outra vez.
Sabendo que tinha os dias contados, ao mesmo tempo que reaprendia a viver sem ele precisava de – devia-se – aproveitar cada instante em que respiravam o mesmo ar, já que podia ser o derradeiro.
Deitou café em duas canecas, barrou manteiga em quatro torradas, cortou pedaços de fruta para uma taça grande e subiu as escadas de volta ao quarto, com o tabuleiro do pequeno-almoço nos braços. Ao transpor a porta, deu com ele sentado na cama a ler, iluminado pela luz que entrava pela persiana aberta até meio.
- Ia zangar-me contigo por não estares aqui – começou. – Mas depois senti o cheiro do café e, com a fome com que estou, achei melhor deixar-te alimentar-me.
Sentou-se ao lado dele na cama, feliz.
- Adoro alimentar-te.
Deixa-me alimentar-te para o resto da vida. Foi o pedido que calou, engolido num soluço.
Deixou as torradas quase intactas e o café bebido apenas até meio. Comer era uma perda de tempo, especialmente quando o estômago se fechara e não parecia ir colaborar tão cedo.
- Que se passa contigo? – perguntou ele.
- Nada – respondeu ela, num fio de voz. – Fazes-me feliz.
A ideia de desapareceres é que me destrói, pensou.
Ele puxou-a para si e, no quarto que um dia pensara vir a ser o seu, amaram-se. Ou assim lhe pareceu, sufocada pelo peso dele à sua volta, perdida no aroma do seu corpo, com o coração totalmente entregue a ele.
Não sabia como ia proteger-se, como ia lidar com a ausência dele, uma vez mais. Não depois do sonho, de várias utópicas semanas de romance quase real. Parecia real. Fora real.
Era fraca demais para o ver virar-lhe costas e virar-lhas também, não tinha nada a que se agarrar, que a mantivesse viva dia após dia, digna de si.

Duas semanas mais tarde, nua, no chão da sua casa de banho, teve uma decisão para tomar. A mais importante até então. Provavelmente a mais importante daí para a frente.
Por ironia, a pessoa que a ajudaria a resolver uma encruzilhada assim era precisamente aquela com quem não sabia se queria partilhar aquela indefinição. Não estava pronta, mas queria-o, mais do que qualquer outra coisa na vida.
Sentia-se fraca, com a cabeça vazia, incapaz de raciocinar e de desempenhar a mais básica das tarefas, como tomar duche. Mal disposta, arrastou-se para debaixo da água quente.
Aquela que previa vir a ser a decisão dele era-lhe inconcebível. Seria dolorosa demais em todos os sentidos, destrui-la-ia um pouco mais deixando-a sem nada, vazia dele, de si, de sonhos e de qualquer dignidade. Estava sozinha, escolheu.
Bateu-lhe à porta de casa com a desculpa de lá ter deixado um casaco. Longe do olhar dele, recolheu as poucas coisas que ali fora deixando, abraçou-o com a força de quem sabe ser a última vez e foi-se embora, deixando para trás um adeus, o seu grande amor e a vida que nunca lhe pertencera.
Esperava-a um futuro diferente daquele que alguma vez teria pedido. Não estaria, todavia, sozinha: se tudo corresse bem, em breve começaria uma nova vida com o fruto daquela relação. E nunca mais teria de despedir-se dele.

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