quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Magusto

Num estado semi febril provocado pelo cansaço acumulado, desligou o computador e saiu para a escuridão cerrada da rua, deixando para trás a iluminação branca do escritório e a algazarra dos colegas, típica de cada final de dia.
Sentou-se no carro, isolada do mundo. Pousou as mãos no volante, apoiou a testa nas costas das mãos e, de olhos fechados, pretendendo fugir de si e do que a rodeava, foi, no entanto, incapaz de escapar ao remoinho da angústia que lhe consumia as entranhas. Sentia-se sozinha, perdida, sem rumo. Não via uma placa, sequer, que lhe desse uma pista do caminho a seguir.
Quase a contra vontade, dirigiu-se à praia. Estacionou o carro virado para o mar e esperou que este fizesse a sua magia e lhe trouxesse a tranquilidade e paz de alma que, ultimamente, se encarregava de lhe conferir. De janelas abertas, inspirou fundo o ar fresco e salgado. Sentiu o nariz arder ligeiramente, pelo que o esfregou nos dedos.
Ao seu redor, ia testemunhando as luzes das casas acenderem-se, assinalando o retomar da vida familiar no final de longas horas de trabalho e de escola. Imaginou aquelas famílias reunidas para jantar ao som de relatos das horas de separação, talvez até de gargalhadas e de planos para o dia seguinte.
Colocou os dois braços ao redor do seu próprio corpo, num reflexo incondicionado de busca de calor humano. Faltava-lhe aquilo de que mais precisava: recuperar aquela sensação de pertença e de entendimento. Queria, mais do que tudo, ser parte de algo, de alguém, de uma família que a esperasse, que precisasse dela e que lhe devolvesse a dedicação e o carinho que tinha para lhe dar.
Era um dia quase banal, não fosse o cheiro das castanhas assadas pelos vendedores ambulantes num pano de fundo de decorações de Natal precoces. De vez em quando detetava-se, também, o fumo escapado pelas chaminés das lareiras caseiras, diante das quais aquelas famílias que não via estendiam uma manta sobre a qual se deitavam a comer castanhas com geleia, manteiga e requeijão e a beber jeropiga ou um copo de vinho. Possivelmente – provavelmente, na verdade –, não era nada disso que se passava dentro de qualquer uma daquelas casas, mas era isso que, neste ano, queria ter. Muito mais pelo que significava do que pelo ato em si.
Toda a gente tinha alguém, toda a gente fazia parte de algo. Menos ela, contando com a sua própria companhia, apenas, e com a do mar, que tinha mais que fazer do que prestar-lhe atenção.
Fez marcha atrás, pôs o carro em movimento e encaminhou-se para casa, mentalizando-se de que não temos aquilo que queremos, mas aquilo que nos calha na roleta russa da vida. De nada lhe serviria sonhar, ou rezar ou acreditar em superstições.
Mal meteu a chave na porta, antes ainda de atirar com os sapatos para um canto, ouviu as vozes atropeladas na sala de jantar. Sorriu: eles não tinham consciência da sorte que tinham, porque a davam por garantida. Não sabiam o quanto podiam não ter agora, nem se apercebiam da conquista enorme que é construir, do nada, de uma pessoa só, uma família.
Abriu a porta de acesso à sala e deu com eles perdidos em conversas encadeadas, algumas sem grande sentido, arrancando risos e comentários divertidos. Diante deles, sobre a toalha colorida da mesa, estava uma grande taça de castanhas, um prato com marmelada e queijo, uma pequena taça já quase sem geleia e uma garrafa ainda praticamente cheia de licor.
Sorriu um pouco mais, deixando lá longe, junto ao mar, aquela pessoa perdida e isolada no mundo:
- Há castanhas!
A admiração da mãe foi traduzida pela pergunta do irmão mais velho:
- Mas tu afinal gostas de castanhas?
Abanou a cabeça, mantendo o sorriso:
- Não, não consigo sequer suportar o cheiro das castanhas sem casca.
À volta da mesa, quatro pares de olhos fixaram-na confusos durante alguns segundos, até que alguém retomou a conversa que ela tinha interrompido.
Aquela família não era obra sua, não era o seu legado. Mas era a sua, com as suas próprias tradições, as suas próprias formas de partilhar os acontecimentos do dia e de planear o dia seguinte.
E o seu som preferido era, sem dúvida, o das gargalhadas familiares. 

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