segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Sem-abrigo

A porta aberta chamava o ar frio da manhã a entrar, sem barreiras nem controlo, apenas uma passagem direta para o calor esforçado do interior.
Lá fora, a rua sinistra, tantas vezes percorrida e pisada com todos os pares de sapatos que possuía, apresentava-se como um elemento estranho, desconhecido. Hostil, até, repleto de caras anónimas num mar de medos, de sustos e de repreensões alheias.
Gelava, fixando as pessoas que desfilavam à sua frente, apressadas para continuar as suas vidas tão cheias e completas que se desinteressavam do que as rodeava e daquele par de olhos que as perscrutava, querendo saber mais do seu caminho e, ao mesmo tempo, temendo descobrir a complexidade daqueles seres, de certa forma superiores.
Lá dentro, no quente conforto de uma casa habitada, os rostos familiares com que não se identificava escarneciam, evidenciando-lhe o seu desencaixe, a sua ausência de pertença. Não estava lá e não estava cá, era parte deles, mas não tinha lugar ao seu lado, naqueles sofás de couro bem cuidado, naquelas canecas de chá fumegante, naquelas mantas polares, naquelas conversas fluidas de quem se conhece bem e partilha momentos quase sem ter de, para isso, falar.
No vidro da porta descobriu o seu reflexo. Os olhos quase fechados, o nariz fino, a ausência de sorriso nos lábios, o queixo arredondado e os traços distintivos eram seus, sem dúvida, mas não se reconhecia neles. Era a sua cara, mas não era a sua pessoa, porque não se revia naquele ser apagado, despojado de qualquer brilho.
Olhando um pouco mais fundo, encontrou uma escuridão que sabia existir, que sentia, mas cuja intensidade da negritude assustava, porque aparentava ser um ponto sem retorno, do fundo do qual era impossível recuperar.
Punha um pé de fora e uma onda de arrepios enregelados sacudiam-lhe o corpo confuso. Refugiava-se lá dentro até o calor excessivo lhe colar as roupas à pele, num incomparável desconforto.
A dança sucedia-se, sempre refletida naquela porta de vidro que lhe seguia cada movimento, rangendo de vez em quando, espicaçada pelo vento provocado por aquela pessoa fora de si e do mundo, querendo descobrir qual o lugar a que pertencia. Lá dentro, lá fora ou no intermédio, com um pouco dos dois, com nada de ambos?
Naquele limbo estonteante, a porta de vidro sugava-lhe um pouco mais da sua alma a cada passo em frente e a cada passo atrás, perdendo-se na indecisão e na indefinição de não se sentir bem em lado nenhum, nem na sua própria pessoa.
Não dormia na rua, mas era um sem-abrigo.

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