quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Terrores noturnos

Tinham-se passado cerca de quatro meses desde a tarde que tudo mudara. Não no sentido convencional nem com um marco de mudança definido, mas fora como se os ventos tivessem começado, apenas porque sim, a soprar a seu favor.
Sentada no sofá, coberta por duas mantas quentes, via esses últimos meses passarem-lhe diante dos olhos em forma de fotografias e de pequenos vídeos relativamente acelerados, ao som de uma música romântica e bem-disposta, até que a sucessão de imagens travou a fundo e estacou naquela noite gelada que nem as iluminações natalícias atenuavam.
O coração esmurrava-lhe o peito com violência e o nó da angústia estrangulava-lhe a garganta. Queria falar, desabafar, gritar, mas perdera a voz. Nem chorar conseguia, ainda que sentisse que era essa a única forma de aliviar aquele aperto.
Tinha sido culpa sua: permitira-se acreditar e relaxara na certeza de que era para ser. Achara que daquela vez tinham tudo para resultar, para serem mais fortes do que os medos, mas dera-se conta de que os fantasmas não eram espectros do passado que surgiam de vez em quando para os atormentar. Tratavam-se, afinal, de monstros que partilhavam, no momento presente, a vida com ele, rasgando, por consequência, a dela em incontáveis fiapos sangrentos.
Não sabia dele. Procurava-o por todo o lado não chegando a contactá-lo para não o empurrar para mais longe ainda. Mentia. Não lhe falava para não ter de ouvir a verdade dolorosa de que não lhe era suficiente.
As duas da manhã chegaram e passaram numa sequência acrobática de olhos no telemóvel e na televisão, fingindo distrair-se. Tentando, desesperadamente, distrair-se.
As três da manhã apresentaram-se como uma luta estafante contra o sono. Não podia ir dormir sem saber que ele voltara para casa, que estava lá sozinho e que se lembrara de lhe mandar um beijo antes de dormir.
Às quatro da manhã soube que estava a fazer figura de parva e que era em vão que esperava, mas deixou que as cinco da manhã a encontrassem, ainda, numa sonolência não admitida, agarrando o telefone firmemente na mão direita, confirmando que tinha a internet e o som ligados.
Não era falha informática. Era falha humana. Dele ou dela, não sabia. Provavelmente dos dois, numa culpa muito diferente.
Deitou-se, soluçou forçando o choro que não a aliviou e adormeceu, por fim, com o telemóvel pousado na almofada.
Viu-os juntos; ouviu-lhe o riso de mulher despreocupada, segura de si e dele. Quis fugir e virar costas, mas a força magnética do nefasto proibido manteve-a de olhos pregados naquele par abraçado, que construía, diante de si, memórias que ficariam para sempre.
Acordou sobressaltada e dorida. Dormira umas quatro horas, não muito mais, e não descansara nada. Sentia-se sem forças nem vontade para encarar o dia que vivia para lá da persiana fechada, mas aterrorizava-a a ideia de adormecer e regressar àquela realidade do pesadelo.
Respirou o aroma do café até este estar demasiado frio para o conseguir beber. Aqueceu-o, sorveu um golo pouco satisfatório e deitou o resto no lava-loiças. No telemóvel ainda nada.
Fez duas torradas, mais para se distrair do que para matar a fome, e foi-se forçando a trinca-las diante de um desinteressante programa de televisão sobre qualquer coisa.
Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquele equilíbrio, uma vez que já pendia mais para o lado da loucura do que para o da sanidade mental. O seu lado racional exigia-lhe que se deixasse de tretas, de sonhos e de imaginações ensandecidas e que assumisse uma postura menos submissa aos seus caprichos mimados, que lhe diziam que talvez devesse aguentar um bocadinho mais. Só até o convencer… só até ele se convencer de que não precisava de mais ninguém.
A meio da tarde, os seus olhos inchados e sonolentos leram uma mensagem dele, exatamente nos moldes que tinha imaginado. Nada sobre a noite anterior, nada sobre gostar dela ou ter sentido a sua falta. Só um vago interesse em saber se dormira bem e se queria lanchar com ele.
Dormi bem, sim. Mas talvez devesse ter dormido um pouco mais ;), respondeu na mesma mensagem em que aceitou o convite para lanchar.
Que se lixe, pensara. Afinal de contas, hoje é comigo que ele quer estar.
Assim que o encontrou, abraçou-o com força, pousou-lhe um demorado beijo nos lábios e perguntou-lhe, numa animação ensaiada, sem saber de que tipo de resposta estava à espera:
- Divertiste-te, ontem?

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