segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Instinto de sobrevivência

O mais triste não é quando alguém nos morre, deixando este mundo definitivamente e a nós cheios de lembranças que recordamos com carinho, com uma vontade imutável e inalcançável de as repetir.
Não, o mais triste é quando matamos pessoas que continuam vivas, a caminhar pelo mesmo mundo que nós, a ouvir as mesmas músicas, a ver as mesmas pessoas. Ainda que estejam mortas dentro de nós, tendo deixado apenas memórias amargas distorcidas pela mentira.
Sabemo-las vivas mas não nos preocupamos com elas. O amor deu lugar ao feio e destrutivo sentimento que é o ódio, a um desejo ardente de que o carma seja, de facto real… até que mesmo ele se evaporou, deixando no seu lugar, naquele pedestal cor-de-rosa com coraçõezinhos bordados a ouro, um vazio de indiferença. Mas por fim, até esse vazio se fechou e a indiferença alastrou-se do coração ao cérebro, à barriga (e às borboletas que por lá habitaram em tempos), às mãos que costumavam ser ávidas do toque especial, à boca que tantas frases bonitas pronunciou, tantos pedidos formulou e tantas declarações de amor teve de calar.
O luto é feito num silêncio desolado, sem corpo para enterrar nem cinzas para espalhar ao som de uma bela cantiga ou de frases de apreço e de homenagem. E sem lágrimas, porque a morte foi consciente, foi querida, foi necessária, depois de tantas lágrimas terem sido já derramadas em vão e em desespero.
O fantasma da pessoa que matámos irá, eventualmente, assombrar-nos. Num parque de estacionamento, no carro ao lado parado no trânsito, numa sala de cinema, num supermercado cheio de gente ou mesmo nas fotografias que foram tiradas, nas músicas antigas e nas que ainda irão ser lançadas, nas datas significativas. Nesse momento, ao contrário do que acontece com as pessoas que nos morreram, com quem gostaríamos de passar nem que fosse um só minuto mais, resta virar as costas e correr na direção contrária, para longe da assombração e dos calafrios de medo.
Porque se fazemos alguém morrer em nós, por insuportável que possa parecer essa tarefa… é porque precisamos de sobreviver.
E a tristeza é, então, a porta para a felicidade.

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