quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Preto, branco ou cinzento



Fotografia @Sara Trigo


Há zangas tão consagradas, que o tempo se encarregou de ocultar a sua origem, tornando-as num dado adquirido inquestionável e eliminando qualquer memória comum, como se nunca tivesse sequer existido alguma. As costas voltadas são, então, o novo estado de ser.
Não é o caso desta que, não consumindo ativamente Sofia, a corrói pouco a pouco, quase sem se deixar notar. Com o tempo, a causa foi-se desvanecendo e todas aquelas falhas que na altura foram suficientemente significativas para afastar Mena da sua vida são, agora, memórias esbatidas de uma tempestade instalada numa chávena de chá. E aquele rancor que a fez desligar o telefone decidida a nunca mais dirigir a palavra à (então) amiga foi substituído por uma outra sensação desagradável de perda e de ausência permanente – a saudade.
Saudade… Mena adorava essa palavra, como qualquer português que ache que se preza. Com efeito, assentava bem na sua alma nostálgica, religiosa e patriótica, na figura da filha dedicada à família e agradecida a tudo e a todos. Nunca chegara a compreender aquela adoração pelos pais, que nada mais tinham feito do que ser os melhores pais que sabiam, à semelhança de quaisquer outros. Nunca chegara a encarar com bons olhos a dedicação quase total aos problemas dos amigos, tomando-os em parte como seus, sofrendo com eles e sentindo o alívio da sua resolução.
Sem o ter jamais reconhecido conscientemente, Mena era a melhor pessoa que conhecia. E era demasiado boa pessoa para Sofia lhe aceitar os erros. Acima de tudo, eram as ausências que atacavam Sofia que, desprovida de Mena, era dominada pela pessoa carente que, no fundo, era.
Lembra-se das últimas palavras que lhe disse, da entoação com que as proferiu e do resultado delas.
Foi numa manhã de dezembro aleatória, enquanto deambulava pelo centro da cidade à procura de um presente de Natal para o pai, que lhe pareceu vê-la. A claridade filtrada pelas nuvens carregadas, nas quais se confundia o fumo das castanhas assadas vendidas nos carrinhos metálicos, cegava os olhos ainda mal despertos, em choque com a separação do sonho.
Estugou o passo e seguiu a cabeleira loura que a conduziu até à entrada de uma loja de roupa. Estacou, em choque. Já ali tinham estado as duas, quando Sofia aconselhara Mena na compra de um vestido para o casamento do qual seria madrinha e que, anos mais tarde, acabaria por ser aquele com que Mena testemunharia, também, o casamento de Sofia.
Estava ainda especada junto à montra, com a confusão estampada no rosto, quando Mena regressou. Estavam frente a frente pela primeira vez em demasiados anos e Sofia cruzou os braços atrás das costas para controlar o impulso de a abraçar.
Por fim, segurou-lhe na mão, puxou-a para um canto e expôs-lhe como apenas recentemente fora capaz de se pôr no lugar dela, de pensar de acordo com a sua perspetiva e de ter uma nova clarividência dos acontecimentos. Reconheceu, para Mena e para si mesma, que aos vinte e quatro anos, achando-se detentora de um conhecimento imenso e soberano, era, na verdade, demasiado pouco adulta para ser capaz de estabelecer empatia com tudo o que diferisse de si. Era uma crítica muda; o braço de ferro que afastava o que não fosse semelhante a si.
- Venham almoçar lá a casa – pediu. – Tu, o teu marido e o teu bebé.
Mais do que um convite, era um pedido, uma admissão de humildade e uma tentativa de corrigir os seus erros e foi com surpresa e apreensão que a ouvira aceitar. Estava preparada para a recusa, para que tudo se mantivesse igual. Não estava, de maneira nenhuma, pronta para agir perante a abertura que encontrara.
Desistiu da busca da prenda, passou no mercado e correu para casa. Sabia exatamente o que ia cozinhar.
Picou seis dentes de alho e salteou cogumelos portobello com chouriça de sangue. Enquanto a o linguini cozia, tostou lâminas de amêndoa, ralou um pouco de parmesão para uma taça e bateu três ovos. Escorreu a massa que misturou com os cogumelos e a chouriça, temperou com endro e, por cima, deitou os ovos. Mexeu bem. Colocou tudo numa taça, salpicou com as lâminas de amêndoa e o queijo ralado.
A campainha tocou no instante em que colocava o almoço na mesa. Apressou-se a tirar o vinho rosé do frigorífico e foi abrir a porta, agarrando-a com força para controlar os nervos.
Não conseguiu esconder a sombra de desilusão quando viu sair apenas Mena do elevador. Acedera a alguma aproximação, mas mantinha uma barreira clarividente. Protegia a família, o presente e o futuro. Eram apenas Mena e Sofia, uma ligeira versão atual do passado.
- Cheira bem – comentou Mena, encaminhando-se para a sala.
Sentaram-se as duas, sem saber por onde começar.
Serviram-se e provaram a primeira garfada. Partiriam daí.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Efémera distorção




Fotografia: @SaraTrigo

Com a ponta dos dedos esfarelava, distraidamente, um scone de um castanho dourado perfeito, alheada da conversa que se desenrolava à sua frente. Passeou os olhos pouco observadores pelas paredes de madeira escura, quase rural, incapaz de apreciar a beleza do contraste pintado pelo conforto da sala aquecida pela lareira mesmo em frente ao mar inquieto, separados apenas por um reduzido lençol de areia e um vidro ligeiramente embaciado.
- Vais continuar a destruir o pobre scone ou vais comê-lo?
Mexeu-se no maple branco, apenas para dar sinal de que ouvira a pergunta, não querendo empenhar forças em dar uma resposta.
Fixou-se, finalmente, na colega que a olhava expectante, entre o divertido e o apreensivo.
- Que sentido é que isto faz? – perguntou lentamente. – Este cenário onde estamos neste preciso momento é utópico. Esta harmonia perfeita de materiais, de elementos, que se tocam apenas de raspão não existe. É uma ilusão da qual não fazemos parte, como o mar que, na verdade, só toca na parede ao meu lado porque os meus olhos captam a realidade sob essa perspetiva, de cuja beleza podemos desfrutar durante fugazes instantes.
- Tu fazes parte desta beleza, Catarina. Cada lugar, cada cenário conta uma história diferente de acordo com quem a protagoniza. Tu fazes parte desta. Tu, eu e a Carolina.
Começou a rir às gargalhadas:
- Até isso! Até nós as três somos demasiado perfeitas para a realidade. Olha para nós: Marina, Carolina e Catarina. Três. Nomes com a mesma terminação. Altas, magras, bonitas, bem-sucedidas. Se alguém nos fotografasse agora, éramos uma capa de uma revista qualquer de lifestyle. – Catarina elevara a voz gradualmente. Atirou com um pedaço de scone para o prato, espalhando migalhas na toalha. – E de que é que isso nos serve? – A pergunta saiu num guincho, acompanhada por um encolher de ombros.
As três mulheres não se conheciam bem, apesar de serem colegas de trabalho há já vários anos. Aquela era, aliás, a primeira vez em que se encontravam fora dele.
- Fui perfeita a vida toda – continuou Catarina, mirando as unhas cuidadosamente pintadas de castanho-escuro. – Tirei o curso que devia, porque era o que eu queria, mas também porque era o que os meus pais achavam indicado para mim. Segui os passos do meu pai e nunca tive de procurar trabalho, por ser tão boa no que fazia. Sempre! Nunca fiz uma única coisa errada, nunca tomei uma decisão que não devesse. Até o destino escolhe para mim o caminho correto – voltou a rir, desta vez sem qualquer vontade. – Imaginem que o meu marido me deixou, mas para não ser mãe solteira, sofri um aborto! O mundo decidiu que eu tenho de ser perfeita e o que eu sou é uma personagem de um cenário idílico, sem qualquer controlo daquilo que faço. Sou perfeita e isso não me leva a lado nenhum. Tal como vocês…
Instalou-se um silêncio pesado enquanto Catarina escondia a cara por detrás das mãos, ocultando as lágrimas que secou antes de voltar a encarar as colegas.
- Desculpem…
- Não, tens razão – atalhou Carolina. – Eu sou a mãe, esposa, irmã e filha perfeita. Vivo rodeada de gente mas sinto-me sozinha o tempo todo, porque o peso de todas as responsabilidades e da felicidade de toda a gente está em mim. Quem é que se encarrega da minha? Eu, só eu. Mas não tenho tempo para ela, porque estou demasiado ocupada com os outros. – Arregalou os olhos, sublinhando o que ia dizer. – Amo-os! Amo a minha família, a minha casa, o meu cão e o meu trabalho, mas não tenho nada que seja meu. Tive de desistir de correr quando engravidei, deixei de ter tempo para qualquer outro passatempo… esta é a primeira vez em vários anos que saio de casa sem ser com a família.
Catarina e Carolina entreolharam-se numa solidariedade silenciosa antes de se voltarem para Marina, como que lhe pedindo que falasse.
- Oh, agora é a minha vez? – brincou, desconfortável, a mais nova das três. – Eu não sou perfeita, não sou como vocês Ou melhor, a minha perfeição é só aparente. A minha magreza é resultado de um distúrbio alimentar que me acompanha desde a adolescência, quando andava no ballet, apesar de ter sido por causa disso que tive de desistir. Passo a vida sozinha porque sou escrava dele. Mesmo que consiga expor-me ao mundo e às pessoas tempo suficiente para começar uma relação, nenhuma sobrevive a isto. E apesar de ter todos os conhecimentos das consequências que posso vir a sofrer… e de que posso sofrer já sem sequer ter noção…, de saber a sua origem e a teoria de como acabar com isto... não consigo, porque no fundo não posso ser menos do que perfeita.
O peso das confissões caiu sobre o cenário de perfeição, tornando-o mais lúgubre, lançando sobre ele um véu negro, filtrando, assim, as tonalidades reconfortantes do outono.
- Quem é que nos impôs isto? – Carolina fez um gesto vago com a mão, encolhendo novamente os ombros. – Acho que fomos nós próprias…
Respondeu à sua própria pergunta, vocalizando, no entanto, aquilo que as outras pensavam.
Saíram para a humidade fria da tarde. Faziam juntas o luto do segredo – o individual, mas também o comum – cujo silêncio haviam quebrado. À medida que avançavam sem pressa ao longo do passadiço de madeira por entre as dunas e a vegetação acastanhada, através da qual o ano envelhecia e as estações quentes se desvaneciam, o véu de negritude ia caindo, como uma tira de seda deixada no canto de um sofá de pele.
Tinham alcançado e mantido ao longo dos anos aquilo que a maioria das pessoas almejava. Eram, cada uma, um exemplo da mulher ideal: belas profissionais de sucesso, independentes económica e emocionalmente, pilar de apoio de quem necessitasse – incluindo elas mesmas – e, claro, desempenhavam o papel irrepreensivelmente em cima de um elegante par de saltos altos a compor a toilette imaculada.
Chegaram ao final do passadiço, descalçaram-se e sentaram-se nas rochas com os pés enterrados na areia fria, a admirar a rebentação onde os pássaros pousavam e levantavam em voos incessantes e descoordenados. O vento fustigava-lhes os cabelos que se emaranhavam entre si, resultando num desalinho a que não estavam habituadas, ao mesmo tempo que sentiam a humidade salgada impregnar-se no algodão das calças e atacar a maquilhagem, esbatendo-a.
Os pensamentos vinham e iam ao sabor da movimentação do mar, confundindo-se. Confundindo-as com a sensação inédita de liberdade que, ali pousadas, num momento improvável, tentavam interiorizar.
Assistiram ao espetáculo do pôr-do-sol enevoado, sacudiram a areia dos pés, calçaram os sapatos, compuseram a maquilhagem com a ponta dos dedos, pentearam os cabelos e caminharam de regresso a casa.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Estrelas numa tarde de verão

[Post originalmente publicado em CPR - A Reanimação da Escrita - o mote é a 7ª frase da 7ª página do 7º livro da minha estante: A Bruxa de Oz, de Gregory Maguire


“Era som sem melodia – como música onírica, recordada pelo seu efeito, mas não pelas suas angústias e recuperações harmónicas.”
Entrava-lhe diretamente na alma, ignorando o ouvido, apoderando-se de um corpo pesado que dançava de forma quase cómica, solta, privado de qualquer coordenação. Os olhos, num estado de descontrolo, traíam o transe a que se abandonava sob o céu estrelado de uma tarde de verão, que o atraía para o abismo da felicidade extrema, sem limites nem barreiras.
Exausto do esforço de colher estrelas com as mãos e a boca, às vezes as três ao mesmo tempo, deixou-se cair pesadamente no relvado ao lado de duas belas mulheres que lhe sorriam. Preferia-as mais novas, mas que se lixasse: eram duas, não podia fazer-se de esquisito, pelo que as abraçou simultaneamente, sob o olhar admirador dos amigos. Podia tudo, conseguia qualquer coisa, desde que acreditasse em si.
Um corpo sem peso, anacrónico e diacrónico, em simbiose constante com a natureza e os quatro elementos. Era terra, água, ar e fogo. Não, era sismo, tsunami, furacão e incêndio. Era a força que controlava a força. E era a tranquilidade depois do temporal. Era a promessa da reconstrução e a recordação da catástrofe.
Era uma ressaca monumental, com tudo a que tinha direito: enjoos, dores de cabeça, fraqueza, taquicardia, desidratação, intransigência total e completa com tudo. Incluindo consigo mesmo. Sobretudo consigo mesmo.
Não reconhecia o sofá onde estava deitado, embora tivesse a certeza de que não era o seu. Certo?
Não, não era. Encontrava-se numa sala demasiado limpa e arrumada para ser a sua.
– Então, pá? Já acordaste? Estávamos a ficar preocupados contigo. São quase cinco e meia.
A voz ressoou-lhe dentro do cérebro, fazendo ricochete nas paredes do crânio e saindo sob a forma de um jorro fétido pela boca, estilhaçando-se pelo chão.
– Merda! – Uma voz feminina juntou-se à tortura, provocando mais um espasmo do estômago vazio, que continuava revoltado com o mundo.
– Bebe isto. – A primeira voz, masculina, fez-se acompanhar de um copo de água com algo efervescente, que recusou inicialmente, mas que foi obrigado a aceitar. – Correu bastante mal, ontem! – O riso forçado traduzia uma crítica velada que o cérebro entorpecido não detetou.
Recordou-se vagamente de retalhos da véspera, em vários cenários diferentes, não sabendo, em nenhum dos casos, como se deslocara. Levou a mão ao malar direito, com um esgar de dor.
– A certa altura abraçaste-te a uma mulher e ao filho. Quando tentaste abrir a camisa da mulher, o miúdo deu-te um arraial de porrada – explicou a voz masculina.
Oh, então fora isso…
A rapariga a quem pertencia a voz feminina revelou-se quando começou a limpar o vomitado que jazia à sua frente, numa poça amarela fedorenta. Reconheceu-a.
– Gosto muito de ti, mas não posso tomar conta de ti todas as semanas. Um dia entras num hotel e atiras-te para a piscina, no outro deitas-te em cima de montes de lixo e achas que és uma espécie de poeta da natureza. Não podemos andar atrás de ti. Tens mais que idade para te saberes comportar.
– Cala-te – ordenou, levantando-se do sofá. – Ninguém te pediu nada.
– És um perigo para ti e para qualquer pessoa, quando te pões a tomar cenas e a beber e a fumar, como se fosses um puto que se apanha pela primeira vez longe dos pais.
– Cala-te! – gritou, erguendo a mão e avançando para ela.
Foi a vez de o dono da voz masculina se materializar entre os dois, empurrando-o com facilidade para trás:
– Vai-te embora!
Saiu, praguejando agarrado à cabeça assim que bateu violentamente a porta atrás de si.
– Vão todos para a puta que vos pariu, mais os vossos…
Esqueceu-se da palavra, mas não se demorou a procura-la.
Estrangulado por uma infelicidade pungente, desejou poder morrer sem ter de se esforçar para tal.
Nem para isso tinha forças. Era um inútil, uma farsa. Quimicamente alterado, era a conceção de um plano infalível e heroico que, sóbrio, era um falhanço estridente. A subversão de uma realidade que não tinha qualquer espécie de razão para existir.
A caminho de casa, despiu a t-shirt, revoltado contra aquele calor insuportável, por onde nem uma aragem soprava. Viu o seu tronco nu no reflexo de uma montra, diante do qual parou, arranhando a pela da barriga com as unhas ao mesmo tempo que soltava um urro de autodesprezo. Não tinha cabeça, não tinha cara, não tinha altura, não tinha dinheiro. Sob o seu controlo tinha, apenas, quanto comia e quanto exercitava, mas até nisso tinha de dar-se como derrotado. Passara uma noite inteira sem comer, graças às cenas que lhe tinham sido fornecidas, e nem assim conseguia alcançar o que ambicionava.
Mudara de país sete vezes nos últimos três anos, achando sempre que era a forma correta de fugir às adversidades. De cada uma das vezes escolhia um sítio qualquer no mapa, desde que tivesse dinheiro para a viagem, aceitava o primeiro trabalho que lhe fosse proposto, inscrevia-se num ginásio e espalhava o seu charme até conseguir reunir um grupo significativo de amigos. Assim que os primeiros reveses se começassem a revelar, partia sem aviso. Uma chamada de atenção paternalista, um objetivo muscular inatingido dentro do tempo, uma falha no trabalho tornavam-no suficientemente impaciente para se pôr a andar para o novo destino, onde tudo correria melhor. Tudo correria, finalmente, bem.
Contudo, acabava sempre por descobrir, umas semanas ou uns meses mais tarde, que dentro da mala levara, bem protegido pela roupa, tudo o que fazia de si uma fraude.
Voltava, então, a sentir a intolerância ardente ao mundo, às pessoas e a si mesmo, fazia as malas e desaparecia. Mas nunca chegava a desaparecer, porque o corpo transportava a alma frágil e destruída. E rejeitavam-se mutuamente, incapazes de dar tréguas.