quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Estrelas numa tarde de verão

[Post originalmente publicado em CPR - A Reanimação da Escrita - o mote é a 7ª frase da 7ª página do 7º livro da minha estante: A Bruxa de Oz, de Gregory Maguire


“Era som sem melodia – como música onírica, recordada pelo seu efeito, mas não pelas suas angústias e recuperações harmónicas.”
Entrava-lhe diretamente na alma, ignorando o ouvido, apoderando-se de um corpo pesado que dançava de forma quase cómica, solta, privado de qualquer coordenação. Os olhos, num estado de descontrolo, traíam o transe a que se abandonava sob o céu estrelado de uma tarde de verão, que o atraía para o abismo da felicidade extrema, sem limites nem barreiras.
Exausto do esforço de colher estrelas com as mãos e a boca, às vezes as três ao mesmo tempo, deixou-se cair pesadamente no relvado ao lado de duas belas mulheres que lhe sorriam. Preferia-as mais novas, mas que se lixasse: eram duas, não podia fazer-se de esquisito, pelo que as abraçou simultaneamente, sob o olhar admirador dos amigos. Podia tudo, conseguia qualquer coisa, desde que acreditasse em si.
Um corpo sem peso, anacrónico e diacrónico, em simbiose constante com a natureza e os quatro elementos. Era terra, água, ar e fogo. Não, era sismo, tsunami, furacão e incêndio. Era a força que controlava a força. E era a tranquilidade depois do temporal. Era a promessa da reconstrução e a recordação da catástrofe.
Era uma ressaca monumental, com tudo a que tinha direito: enjoos, dores de cabeça, fraqueza, taquicardia, desidratação, intransigência total e completa com tudo. Incluindo consigo mesmo. Sobretudo consigo mesmo.
Não reconhecia o sofá onde estava deitado, embora tivesse a certeza de que não era o seu. Certo?
Não, não era. Encontrava-se numa sala demasiado limpa e arrumada para ser a sua.
– Então, pá? Já acordaste? Estávamos a ficar preocupados contigo. São quase cinco e meia.
A voz ressoou-lhe dentro do cérebro, fazendo ricochete nas paredes do crânio e saindo sob a forma de um jorro fétido pela boca, estilhaçando-se pelo chão.
– Merda! – Uma voz feminina juntou-se à tortura, provocando mais um espasmo do estômago vazio, que continuava revoltado com o mundo.
– Bebe isto. – A primeira voz, masculina, fez-se acompanhar de um copo de água com algo efervescente, que recusou inicialmente, mas que foi obrigado a aceitar. – Correu bastante mal, ontem! – O riso forçado traduzia uma crítica velada que o cérebro entorpecido não detetou.
Recordou-se vagamente de retalhos da véspera, em vários cenários diferentes, não sabendo, em nenhum dos casos, como se deslocara. Levou a mão ao malar direito, com um esgar de dor.
– A certa altura abraçaste-te a uma mulher e ao filho. Quando tentaste abrir a camisa da mulher, o miúdo deu-te um arraial de porrada – explicou a voz masculina.
Oh, então fora isso…
A rapariga a quem pertencia a voz feminina revelou-se quando começou a limpar o vomitado que jazia à sua frente, numa poça amarela fedorenta. Reconheceu-a.
– Gosto muito de ti, mas não posso tomar conta de ti todas as semanas. Um dia entras num hotel e atiras-te para a piscina, no outro deitas-te em cima de montes de lixo e achas que és uma espécie de poeta da natureza. Não podemos andar atrás de ti. Tens mais que idade para te saberes comportar.
– Cala-te – ordenou, levantando-se do sofá. – Ninguém te pediu nada.
– És um perigo para ti e para qualquer pessoa, quando te pões a tomar cenas e a beber e a fumar, como se fosses um puto que se apanha pela primeira vez longe dos pais.
– Cala-te! – gritou, erguendo a mão e avançando para ela.
Foi a vez de o dono da voz masculina se materializar entre os dois, empurrando-o com facilidade para trás:
– Vai-te embora!
Saiu, praguejando agarrado à cabeça assim que bateu violentamente a porta atrás de si.
– Vão todos para a puta que vos pariu, mais os vossos…
Esqueceu-se da palavra, mas não se demorou a procura-la.
Estrangulado por uma infelicidade pungente, desejou poder morrer sem ter de se esforçar para tal.
Nem para isso tinha forças. Era um inútil, uma farsa. Quimicamente alterado, era a conceção de um plano infalível e heroico que, sóbrio, era um falhanço estridente. A subversão de uma realidade que não tinha qualquer espécie de razão para existir.
A caminho de casa, despiu a t-shirt, revoltado contra aquele calor insuportável, por onde nem uma aragem soprava. Viu o seu tronco nu no reflexo de uma montra, diante do qual parou, arranhando a pela da barriga com as unhas ao mesmo tempo que soltava um urro de autodesprezo. Não tinha cabeça, não tinha cara, não tinha altura, não tinha dinheiro. Sob o seu controlo tinha, apenas, quanto comia e quanto exercitava, mas até nisso tinha de dar-se como derrotado. Passara uma noite inteira sem comer, graças às cenas que lhe tinham sido fornecidas, e nem assim conseguia alcançar o que ambicionava.
Mudara de país sete vezes nos últimos três anos, achando sempre que era a forma correta de fugir às adversidades. De cada uma das vezes escolhia um sítio qualquer no mapa, desde que tivesse dinheiro para a viagem, aceitava o primeiro trabalho que lhe fosse proposto, inscrevia-se num ginásio e espalhava o seu charme até conseguir reunir um grupo significativo de amigos. Assim que os primeiros reveses se começassem a revelar, partia sem aviso. Uma chamada de atenção paternalista, um objetivo muscular inatingido dentro do tempo, uma falha no trabalho tornavam-no suficientemente impaciente para se pôr a andar para o novo destino, onde tudo correria melhor. Tudo correria, finalmente, bem.
Contudo, acabava sempre por descobrir, umas semanas ou uns meses mais tarde, que dentro da mala levara, bem protegido pela roupa, tudo o que fazia de si uma fraude.
Voltava, então, a sentir a intolerância ardente ao mundo, às pessoas e a si mesmo, fazia as malas e desaparecia. Mas nunca chegava a desaparecer, porque o corpo transportava a alma frágil e destruída. E rejeitavam-se mutuamente, incapazes de dar tréguas.

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